Resolvi colocar o teclado para funcionar hoje após ler uma matéria veiculada no facebook que mencionava a posição de grande parte do Tribunal da Justiça do Rio de Janeiro acerca de negarem o direito a penas alternativas para o tráfico de drogas.A manchete era a seguinte: Substituição de pena: TJRJ tende a afastar a pena alternativa ao tráfico. Eis o motivo pelo qual não me resignei e decidi registrar meu protesto nas vias virtuais.
Fazem duas semanas que, incessantemente, venho discutindo em sala de aula com meus alunos os princípios e fundamentos constitucionais onde devem beber as demais normas do nosso ordenamento jurídico. Discutimos Kelsen, a supremacia constitucional, a importância dos princípios como informadores da vontade do legislador constituinte originário quando elaborou o projeto do vir a ser do Estado democrático de direito. Falamos acerca da hermenêutica jurídica, da necessidade do interprete, seja ele quem for, de beber nas fontes constitucionais o elixir da legitimidade de seus atos, contratos, decisões, leis, etc. Cada princípio, a começar com o da legalidade, igualdade, reserva legal, anterioridade da lei penal, proporcionalidade e razoabilidade, devido processo legal, individualização da pena, nulla poena sine culpa e tantos outros, em uma verdadeira luta quase que cabalística, de uma professora Dom Quixote contra os Moinhos de vento do senso comum, do "eu acho", do "não quero que seja assim"...
Alunos do curso de direito, muitas vezes, são comparados por nós professores à Desembargadores. Não porquê um Desembargador não tenha conhecimento, mas porque, geralmente, à eles se atribui toda uma gama de conhecimento, sobre a qual, não se cabe mais acrescer ou discutir. Eis o senso comum da sociedade acerca do Judiciário. Eis a brincadeira que se faz com o estudante, afim de que ele perceba que deve manter a humildade e galgar a montanha do conhecimento, passo à passo, respeitando os direcionamentos do professor e, se posicionando com base não no " eu acho" mas, pautado no conhecimento enraizado na pesquisa, na leitura da doutrina, da jurisprudência e tudo mais... até chegar a Desembargador, ou assumir um posto douto na seara jurídica.
Mas esse discurso cai por terra quando percebemos que ainda existem no Judiciário, de fato, muitas decisões galgadas em posições de "eu acho", "eu penso", "eu sou Deus, sem dúvida!".
Em um momento histórico onde se consolida a ideia de soberania constitucional, decidir-se contra direitos consagrados nos princípios e garantias constitucionais é uma involução e não um avanço! De fato, como bem ensino aos doutos colegas, alunos de minhas modestas aulas de penal, mesmo a IBP (interpretação da besta da professora) deve se ater aos valores adotados pela constituição sob pena de inconstitucionalidade. Logo, em uma ordem constitucional, já referia o MM. Juiz Marshal no caso Marbori versus Madison, não pode haver Lei ou mesmo contrato que seja maior que a Constituição (e acrescento eu, modestamente, nem sentença, nem acórdão)!
Nos crimes relacionados ao tráfico de drogas, temos uma lei que fere claramente vários princípios constitucionais. Como muito bem defende Karan, várias condutas, de menor e de maior potencial ofensivo, estão abarcadas de forma não razoável, dentro do tipo "tráfico de drogas" ( o aviãozinho, o traficante armado, aquele que armazena a droga, quem tem toneladas da droga e quem tem algumas gramas, quem a embala, produz, transporta, o trabalhador do tráfico, etc, etc..). Lembro muito bem do traficante que deu azo ao filme Meu Nome não é Johny, que, apesar de movimentar milhões em tráfico internacional, nunca tocou em uma arma. Associar todas essas condutas a uma pseudo violência é desconhecer a realidade do problema das drogas e, através de uma generalização inconstitucional, punir desarrazoadamente, desproporcionalmente, sem considerar a implicação de cada indivíduo, seu alcance e mesmo a culpabilidade, no crime que se pretende punir. Nesse sentido o STF já se pronunciou. Equiparar analogicamente a questão das drogas como crime hediondo e retirar a todo e qualquer "traficante" o direito de penas alternativas, é um desconhecimento, ou mesmo uma postura de descomprometimento com a resolução do problema e com a efetivação das garantias constitucionais e mesmo, do Estado democrático de Direito! Assim como nossos atos, o contrato, a sentença ou mesmo a tendência de um Tribunal devem se ater à moldura constitucional, sob pena de inconstitucionalidade!
Em suma, é dever do juiz (e direito do acusado), que ao observar o caso concreto, seja analisada a culpabilidade do sujeito, o nexo causal e as circunstâncias do delito, descritas no art. 59 do CP, fazendo a individualização da pena, dentro de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, conforme determina a Constituição Federal. Do contrário, podemos queimar os livros de Penal e a Constituição em praça pública, fechar os cursos de direito e empossar no cargo de Desembargador os meus alunos de direito do primeiro semestre.
Andréa Madalena Wollmann
Professora de Direito Penal na AJES, Advogada, Ms. Política Social.
Esses vídeos são para os meus alunos de Penal!
Precisamos refletir acerca do porquê da pena de prisão dentro da sociedade atual. Um pouco das idéias de Michel Foucault para vocês.
Elas foram acusadas de matar um menino em um ritual. O caso, que teve o mais longo julgamento do País, pode sofrer uma reviravolta. ISTOÉ revela como as acusadas foram torturadas e as suspeitas de que não é da vítima o corpo encontrado
Antonio Carlos Prado
Ao longo de muito tempo, uma senhora que mora em Curitiba sentia uma torturante angústia nos momentos de lavar o rosto. Não conseguia molhá-lo por inteiro, muito menos enxaguá-lo. Umedecia então sob a torneira a ponta do dedo indicador da mão direita, levava-o à face, ia repetindo esse movimento e molhando a fronte ponto por ponto. Ela se chama Beatriz Abagge, tem 47 anos e é filha de Celina e Aldo Abagge, ex-prefeito da cidade de Guaratuba, no litoral paranaense. Por que Beatriz agia assim? Antes de responder a essa questão, vale registrar outro fato envolvendo ela própria e, agora, também a sua mãe.
“A janela basculante da minha cela era soldada. As guardas achavam que eu
era bruxa, me transformaria numa nuvem de fumaça e fugiria através da grade”
Beatriz Abagge, ré
As celas da penitenciária feminina de Piraquara , cidade que se localiza no Paraná, têm uma janela basculante à frente da janela principal, que é gradeada. Em todas as celas nas quais Celina e Beatriz ficaram trancafiadas nessa cadeia, entre 1992 e 1995, tal basculante era soldado – ou “chumbado”, como diz a filha –, impedindo-se assim o seu movimento de abrir e fechar. As guardas temiam que as duas mulheres, caso o basculante pudesse ser aberto, se transformassem repentinamente em “uma nuvem quase invisível de fumaça e fugissem através de algum quadrado da grade de ferro deixando para trás um sufocante cheiro de enxofre”. As guardas acreditavam que elas eram “bruxas”, assim como nessa versão se fiava a maioria da população de Guaratuba, de Curitiba, do Paraná e de todo o País. A mídia nacional e boa parte da imprensa internacional se referiam à mãe e à filha como “dotadas de poderes de bruxaria”. Elas passaram a ser “As Bruxas de Guaratuba”. ISTOÉ esteve com Beatriz e Celina, que se encontram em liberdade, registrou com exclusividade como vivem e resgatou a sua história que já conta 19 anos. É aqui que se vai começar a responder o que levou Beatriz a não conseguir lavar o rosto como todo mundo lava e, também, o que fez com que ela e sua mãe acabassem presas na cadeia com grades protegidas contra fuga de “bruxas”. Esses dois episódios se fundem em um terrificante cenário de rapto e assassinato de criança, suposta magia negra, bárbaras torturas, rivalidade entre policiais e inimizades pessoais e políticas. E muito terror.
VÍTIMA
O garotinho Evandro, aos 6 anos, quando foi
raptado no caminho entre a escola e a sua casa
O novo e derradeiro júri
Está marcado para a quinta-feira 28, em Curitiba, o segundo júri popular a que Beatriz Abagge será submetida – ela é acusada de, com a cumplicidade de sua mãe, ter assassinado em 1992 o garotinho Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, um alegre menino loirinho que era conhecido e amado em toda Guaratuba. Pesa ainda contra Beatriz, segundo o processo, a acusação de o “crime ter sido praticado em um satânico ritual de magia negra”: Evandro teve o peito rasgado, retiraram-lhe o coração e as vísceras, amputaram-lhe mãos e pés, escalpelaram-no e vazaram seus olhos. No primeiro júri do “caso Evandro”, realizado em 1998, mãe e filha sentaram-se no banco dos réus e foram absolvidas – é o júri mais longo da história do Brasil com 34 dias de duração. Mais demorado que o de Gregório Fortunato, segurança do ex-presidente Getúlio Vargas, acusado do assassinato do major Rubens Vaz no atentado da rua Toneleros. Mais longo que o do coronel Ubiratam Guimarães, responsabilizado pelo “Massacre do Carandiru” em São Paulo – foram 111 mortos e seu julgamento levou dez dias. Também marcou para a história o júri de Beatriz e Celina o suicídio de um dos peritos, com um tiro na cabeça sobre o túmulo de seu pai, à véspera de ele depor. O Ministério Público recorreu da sentença de absolvição da filha e da mãe, e há cerca de um mês o STF decidiu por novo julgamento. A diferença é que, dessa vez, apenas Beatriz será julgada, já que Celina está com 72 anos e pela legislação brasileira a punibilidade cessa quando completada a sétima década de vida. “Fui absolvida e serei absolvida. Eu e minha mãe fomos falsamente acusadas”, diz Beatriz, estudante de direito em Curitiba – na semana passada fez provas de direito penal (“fui muitíssimo bem”), de direito processual penal (“fui muitíssimo mal”) e de direito civil (“fui bem demais, é fácil”). “Beatriz é uma aluna exemplar, aplicada e interessada”, diz o coordenador do curso, professor Álcio Figueiredo. Tanto ele como os alunos ficaram sabendo que a Beatriz Abagge estudante é a Beatriz Abagge que foi envolvida no caso Evandro com a chegada de ISTOÉ. “A minha reação e a de todos os alunos foi a mesma: respeito”, diz Figueiredo.
“Sequestraram minha irmã pensando que ela era eu. Só descobriram o
erro quando outro acusado a chamou pelo nome de Beatriz e não de Sheila”
Sheila Abagge, psicóloga
Disputa política
Faz-se agora, aqui, uma viagem no tempo à pequena cidade litorânea de Guaratuba – 22 quilômetros de praias e um oceano de lendas e acontecimentos sombrios. Corria o ano de 1992, dia 6 de abril, e os moradores mais antigos se recordam que era “uma segunda-feira de garoa”. Caminhando sozinho pelos 100 metros que separavam – e ainda separam – a Escola Olga Silveira de sua casa, o garotinho Evandro desapareceu misteriosamente. Os seus pais, Maria e Ademir Caetano, mantinham a esperança de recuperá-lo com vida mas pressentiam o pior, até porque dois meses antes também desaparecera outro garoto, Leandro Bossi, nunca mais localizado. No sábado seguinte, 11 de abril, a polícia anunciou que o corpo de Evandro fora encontrado, sobrevoado por urubus e vilipendiado, em um matagal da cidade – próximo ao seu cadáver estava a chave de sua casa. Começou aí o martírio do luto da família. Começou paralelamente o calvário de Celina e Beatriz, respectivamente esposa e filha do prefeito Aldo Abagge, falecido em 1995 quando elas ainda estavam presas. “Sob forte escolta, porque nos julgavam perigosas assassinas, pudemos deixar a cadeia por algumas horas e visitamos o Aldo já muito doente no hospital. Falamos a ele que estávamos em liberdade para que morresse em paz”, diz Celina. A ex-primeira-dama, prima direta do cônsul da Síria no Paraná e em Santa Catarina, Abdo Dib Abage, cumpre atualmente a rotina de cuidar dos netos. Poderosa, tradicional e milionária que era, a família de origem síria e libanesa (tanto os que assinam seus nomes com dois ges quanto os que o fazem com um ge só) quebrou financeiramente e mora em uma casa cujo aluguel é pago por um genro de Celina que é desembargador. “Tudo que tínhamos foi gasto em honorários de advogados”, diz Beatriz, com a altivez dos que são acusados sem provas, empobrecem diante de tal vicissitude mas não abrem mão de seu “mais sólido patrimônio”: “A minha maior riqueza ninguém leva, a minha maior riqueza é a minha inocência e a inocência de minha mãe.”
POLÍTICA
O ex-prefeito Aldo Abagge morreu em 1995
achando que a esposa e a filha estavam em liberdade
Anunciada a localização do corpo de Evandro, ou do suposto corpo como se verá mais adiante, a polícia civil começou a investigar e a enfrentar obstáculos – um deles é que durante dois meses os laudos do IML e da perícia não lhe foram fornecidos, embora estivessem concluídos. Vai entrar em cena, nesse momento e sem competência legal para cuidar do homicídio, o então grupo de elite da Polícia Militar do Paraná. Por meio de depoimentos de policiais e ex-policiais que atuaram no caso, dados com exclusividade à ISTOÉ, hoje se comprova que alguns integrantes desse grupo da PM agiram como agiam os seviciadores da ditadura, à época recém-encerrada no Brasil. “Houve tortura. Pessoas das quais os policiais militares suspeitavam foram sequestradas, levadas sem mandado de prisão e torturadas”, diz o delegado e diretor do Departamento de Crimes contra o Patrimônio, Luiz Carlos Oliveira, um dos homens mais prestigiados da polícia no Paraná. Ele fala com a autoridade de quem investigava o desaparecimento de Leandro e cruzou com as investigações sobre a morte de Evandro. “Beatriz e Celina foram seviciadas até dizerem que mataram Evandro. Outro acusado, o pai de santo Osvaldo Marcineiro, não tinha mais costas de tanto levar porrada. As costas dele ficaram negras. Era um hematoma só. Eu vi.”
MEDO E DOR
Foto atual da sala que servia de gerência na serraria: nela,
Evandro teria sido morto em suposto ritual de magia negra
A engrenagem do horror que remete aos tempos dos porões do regime de exceção começou a funcionar, segundo diversos depoimentos, com a chegada de alguns PMs do grupo de elite. Mas como eles desembarcaram em Guaratuba? Por que Celina e Beatriz foram envolvidas? Sai-se agora momentaneamente do terreno policial e entra-se no campo político, mais especificamente no que se refere aos projetos do Conselho de Desenvolvimento do Litoral que tratava de estabelecer a “verticalização” (construção de prédios) na orla do Estado. O prefeito Aldo Abagge elaborara um plano de zoneamento que não vetava totalmente a “verticalização” nem a autorizava plenamente, ou seja, podia-se construir mas não nas regiões próximas às praias. Ele atraiu com isso pesadas rivalidades políticas, locais e estaduais, ao contrariar interesses financeiros daqueles que sonhavam em transformar Guaratuba em um canteiro de obras de altas edificações, como aconteceu com a vizinha Caiobá. Sem receber verbas do governo, Aldo se viu obrigado a majorar impostos e valores de contas para tratar o esgoto do município. Mais animosidades surgiram, algumas de ordem pessoal – politicamente o prefeito se tornou vulnerável por todos os ângulos. Recorreu ao seu protetor, o deputado Aníbal Curi, presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, mas ele nada conseguiu junto ao Poder Executivo estadual.
DITADURA
Casa na cidade de Guaratuba do ex-ditador do Paraguai
Alfredo Stroessner: base de sevícia da polícia
Sequestro e tortura
Olhando-se novamente para o campo das investigações, ao Ministério Público foi então entregue uma relação de suspeitos com nomes de pais de santo e os de Celina Abagge e de sua outra filha, a psicóloga Sheila Abagge. A família era proprietária em Guaratuba de uma tradicional serraria (50 funcionários), hoje desativada e abandonada – em seus áureos tempos fornecia madeira para a fábrica de lápis Johann Faber. No dia 2 de julho de 1992, três meses após o desaparecimento de Evandro, os policiais do grupo de elite invadiram pela manhã a residência da família que ficava em frente à prefeitura sob a acusação de que Celina e Sheila teriam sequestrado Evandro e o matado na serraria – oferecendo seu sangue, coração e vísceras a Exu, uma das entidades da umbanda, cuja imagem se localizava à esquerda da porta principal da empresa. Quanto à residência, ela já não existe, foi demolida e apenas conservaram-se, numa altura mínima, parte dos muros originais, assim como preservaram-se os umbrais. No terreno funciona o estacionamento do supermercado Brasão.
CEMITÉRIO
No túmulo (abaixo) de Evandro há fotos e brinquedos –
e muitas dúvidas se o seu corpo de fato está nele sepultado
Os policiais prenderam e transportaram em carros “chapas frias” Celina e Beatriz, achando que Beatriz era Sheila. Enquanto isso, Osvaldo Marcineiro e mais dois suspeitos já amargavam torturas na casa de veraneio em Guaratuba do ex-ditador do Paraguai Alfredo Stroessner, localizada e fotografada por ISTOÉ. Tanto em Curitiba quanto em Guaratuba, a questão de ter havido tortura é ponto pacífico. “O Ministério Público quer condenar a ré para jogar uma cortina de fumaça nas atrocidades cometidas”, diz o advogado Adel El Tasse. Beatriz foi violada sexualmente por cinco torturadores, tomou choques elétricos e padeceu de sessões de “afogamento” numa chácara – eis a explicação do motivo pelo qual ela não conseguiria durante anos lavar o rosto normalmente. “Desmaiei não sei quantas vezes durante a tortura, sangrei, urinei, evacuei. Foi estupro, choque e afogamento”, diz ela. E os torturadores só souberam que Beatriz era Beatriz, e não Sheila, quando levaram um ensanguentado Osvaldo Marcineiro à sua presença e ele a chamou pelo nome. Na mesma chácara, em outro quarto, Celina também era seviciada. Quando Beatriz não suportou mais o suplício, foi carregada para diante da mãe e implorou: “Diga tudo o que eles quiserem porque eu não aguento mais choque, não aguento mais estupros e afogamentos.” “Ela me suplicou para que eu falasse em um gravador tudo aquilo que os torturadores me ditavam”, diz Celina. Em fita cassete que compõe o processo, ouvem-se vozes ao fundo e há o constante ruído de ligar e desligar o aparelho. Mais: as respostas de Celina demonstram que alguém corrigia o que ela falava: “Com o que você matou?”, pergunta o torturador. “Com uma paulada”, responde Celina – e o gravador é desligado. Ligado novamente, ela corrige: “Com uma faca.” Desliga. Liga. Ela diz: “Não, com uma serra.” Ruído, e vem a complementação: “Serra da serraria.” “Uma investigação que começa errada só pode terminar errada”, diz o ex-policial e advogado João Ricardo Keppes de Noronha, que à época mandou apurar o que ocorrera. Dos “porões” da repressão em Guaratuba elas foram transportadas para diversos postos da Polícia Militar e finalmente à penitenciária de Piraquara – aquela onde soldavam o basculante para as “bruxas” não fugirem. Ao desembarcarem nela, cada uma das mulheres ficou trancafiada um mês em “solitárias”, nuas, sem direito a banho, sem um segundo de sol e privadas de alimentação adequada. Beatriz já começava a gargalhar sozinha a gargalhada das loucas, quando uma aranha a devolveu à sanidade. Olhando-a tecer sua teia em um canto da encardida e inóspita “solitária”, Beatriz lembrou-se de uma música de criança e voltaram-lhe as lembranças, memória e lucidez. Beatriz sabe a letra de cor: “A dona aranha subiu pela parede/veio a chuva forte e a derrubou/já passou a chuva e o sol já vem surgindo/e a dona aranha continua a subir.” Nessa cadeia Celina fazia doces a pedido da direção e numa dessas ocasiões foi escoltada a uma dependência para prepará-los. Passou por um local de onde se via bom pedaço de céu. Era noite. Noite bonita. Ela se maravilhou: “Olha a lua!” As guardas se jogaram imediatamente ao chão aos gritos de “cuidado com a bruxa!”, “a lua interfere na bruxa!”. Celina ficou atônita, as guardas se levantaram e a levaram correndo de volta à cela. Com janela “chumbada”, é claro.
“Eu era e sou vizinho da família do menino morto
O crime paralisou por meses toda Guaratuba”
Wilson Henttralt, garçom
“O corpo sepultado não é de Evandro”
A tortura será um dos pontos centrais do novo júri. Acusado por diversos órgãos de comunicação e também pelas rés de ser o comandante da sevícia, o coronel da reserva Valdir Copetti Neves rompeu o seu silêncio de 19 anos e falou com exclusividade à ISTOÉ na praça de alimentação de um shopping em Curitiba. Como quem manda um recado de que cansou de ser solitariamente o vilão da história, ele declarou: “Por que perguntar de tortura e circunstâncias de prisão somente para mim? Por que não se pergunta também ao Ministério Público e à Polícia Federal que estavam na investigação?” Nas últimas duas décadas, o coronel nunca se deixou fotografar (há apenas uma imagem antiga dele na internet). Dessa vez, ainda como quem manda um recado, até fez pose para as fotos. Há, no entanto, mais “dinamite” pronta a explodir no caso das “bruxas”. ISTOÉ teve acesso a documentos da época do desaparecimento de Evandro e a depoimentos de autoridades de Curitiba e de pessoas do povo de Guaratuba que dão conta de que o corpo que está sepultado, no terceiro túmulo para quem pisa o Cemitério Central através de sua porta principal, muito provavelmente não é o de Evandro Caetano. O Ministério Público admite que não tem fato novo para esse segundo julgamento e acabou alimentando a tese de que Evandro não está ali enterrado: em 19 anos, por 18 vezes se pronunciou contrário à exumação, atitude que não tomaria se tivesse certeza de que se trata dos restos mortais do menino.
CERTEZA
O delegado Oliveira desafia: podem
exumar o corpo, ele não é de Evandro
O túmulo é uma capela de tijolinhos com gavetas à sua esquerda. “Em qual delas está o Evandro?”, pergunta-se ao zelador do cemitério, Luiz Ferreira. De óculos escuros, fumando e negando-se terminantemente a ser fotografado, ele dispara: “Em qual gaveta? Se é que ele está aí. Quem disse que ele está aí?” O garçom Wilson Henttralt, 56 anos, que vive em Guaratuba e desde criança é vizinho da família de Evandro, também levanta dúvidas em relação ao fato de ser mesmo dele o corpo que a polícia atestou que era. “Esse crime paralisou a cidade e ainda hoje só se fala sobre ele. Houve muita confusão, acho que ninguém sabe ao certo se o corpo encontrado é o do garotinho”, diz Henttralt. “Certeza absoluta de que não é o corpo” quem tem é o delegado Oliveira: “Não é o cadáver de Evandro. Durante as investigações eu disse: pago do meu bolso as despesas de exumação. Ninguém quis me ouvir.” Três exames de DNA foram feitos na época e dois deram “inconclusivos”. O terceiro teste, com um dente de leite que a mãe de Evandro guardara em sua casa bem antes do desaparecimento do filho, constatou apenas o óbvio: que se tratava de um dente do menino. Até aí, nada. Não se estabeleceu nenhum vínculo entre esse dente de leite e o corpo. ISTOÉ revela o depoimento prestado à Justiça pelo professor de criminalística e perito criminal Arthur Conrado Drischel, que examinou local e cadáver: “O corpo não condizia com uma criança de 6 anos de idade, que no caso também não poderia condizer com a vítima Evandro Ramos que tinha 6 anos de idade (...) e todos os outros dados também não condiziam com a descrição de Evandro.” Mais: os peritos deixaram registrado o “desconhecimento da identidade da vítima”.
“Por que apenas eu? Por que não perguntam sobre as prisões e tortura
para o Ministério Público e a Polícia Federal, que também investigavam?”
Coronel Neves
O delegado que ficou contra a pena de morte
Beatriz Abagge, que em breve deverá viver o derradeiro capítulo dessa história que cruzou o trágico destino de Evandro com o trágico destino de sua própria vida, foi execrada e apedrejada em praça pública, numa onda que se formou na qual as pessoas agiam dentro do conceito criado pela filósofa e cientista política Hannah Arendt em “Origens do Totalitarismo”, a partir de uma de sua reportagens para a revista americana “New Yorker”: “a solidão organizada das massas populares”. Beatriz ficou encarcerada com sua mãe por três anos e meio em Piraquara e por mais três anos em prisão domiciliar em Curitiba até o julgamento que a absolveu em 1998. Em liberdade, seu primeiro passeio com a mãe foi no Jardim Botânico, caminhada que refez com ISTOÉ. “Assim que entrei em casa, ainda em prisão domiciliar, detonei o cartão de crédito de meu irmão comprando uma porção de coisas pela televisão. Era o que eu queria fazer. Assim que conquistamos a nossa libertação, no primeiro júri, fomos passear no Jardim Botânico. Era isso também o que queríamos fazer”, diz ela. Medo de encarar novamente sete jurados? “Não tenho medo de mais nada, com certeza o pior na minha vida já veio, que foi a tortura. Nada do que virá poderá ser pior. Os tempos são outros, o estado democrático de direito está consolidado, o mundo dá voltas, as pessoas mudam.” Das voltas que o mundo dá, Beatriz é, na verdade, testemunha em carne e osso: hoje ela trabalha no próprio Poder Judiciário de Curitiba atuando no apoio e acompanhamento às medidas alternativas do Juizado Especial Criminal. Vai a Guaratuba sem medo, assim como foi no Carnaval de 1999, no ano seguinte à absolvição: aí reatou com seu namorado de antes da prisão, casou-se e com ele tem uma filha de dez anos (tem também um casal de gêmeos que adotara antes de ser presa e que já é maior de idade). Separou-se do marido, namorou um advogado 13 anos mais novo, estranhou a diferença de idade e prefere nesse momento ficar sozinha. Medo da solidão? “Não.” Medo de nada? “Olha, tenho medo de engordar. Estou com 52 quilos para uma altura de 1,55 m. Mas devoro chocolate e não vou fazer regime; chega a fome que passei na cadeia.” Quanto à outra parte da fala de Beatriz, a de que “as pessoas mudam”, aqui vão três exemplos.
O primeiro: Humberto Simões, morador de Guaratuba, é viúvo de Albertina Michelatti, que trabalhou na casa de Celina Abagge. Assim que o crime foi divulgado, Humberto e Albertina brigaram em casa e em público: ele acusava a mãe e a filha, ela as defendia. “Com o tempo fui vendo que houve muita trapalhada, mudei de opinião”, diz Humberto. O segundo exemplo trata de mudança na mão inversa: “Distanciando-me dos fatos, nesse instante eu as acho culpadas”, diz uma moradora que está há oito anos na cidade e não quis ser identificada. Finalmente, o terceiro exemplo envolve o delegado Oliveira, que era intransigente defensor da pena de morte. “Quando soube do crime pela televisão, eu gritei: pena de morte para essas duas ‘bruxas’. Pois bem, houve tanto erro da polícia nesse caso que hoje eu sou contra a pena de morte para qualquer ser humano.” Antes de partir de Guaratuba, na quarta-feira 6, justamente a data em que se completaram 19 anos do triste desaparecimento de Evandro, ISTOÉ foi à casa de sua família, a mesma em que ele morou. Seu pai, Ademir, nem chegou até o portão. O máximo que fez foi pôr o rosto na janela e, aos berros para que sua voz prevalecesse sobre os latidos do cachorro, limitou-se a dizer: “Não vou falar nada. Vai embora. Não tenho nada a dizer.”
O APOCALIPSE EM GUARATUBA
Até 11 de abril de 1992, o sábado em que o corpo – ou o suposto corpo – de Evandro foi localizado em um matagal de Guaratuba, o assunto que sobrevivia na cidade entre os mais velhos que vivenciaram o fato e entre os mais jovens que dele ouviram falar dava conta de um acidente natural que na noite de 22 de setembro de 1968 colocou todos em desespero e em preces: uma parte do município foi “engolida pelas águas” e submergiu na baía de Guaratuba. Desesperadas, as pessoas buscavam abrigo na Igreja Matriz Nossa Senhora do Bom Sucesso, construída por escravos e inaugurada em 1771. Até hoje a igreja está lá, intacta com suas paredes de um metro de largura, que, segundo a lenda, guardam milhares de moedas de ouro. Pois bem, na “noite em que acreditamos que seria o apocalipse”, como diz a evangélica Maria das Graças, 73 anos, os moradores queriam se abrigar na igreja porque acreditavam que “estariam livres de seus pecados naquele juízo final”. A história tornou-se durante décadas a pesada recordação. Outra viria a ocupar seu lugar, no entanto, 24 anos depois – e até os dias atuais é a que mais resiste ao desgaste do tempo: o caso das “Bruxas de Guaratuba”.
Vale a pena consultar a página e ver as fotos.
O mais importante dessa reportagem é desconstituir a idéia de que não existe mais tortura o Brasil e de que um senso comum esteriotipado, preconceituoso, pode dar azo a uma série de abusos e injustiças.
O direito Penal tem princípios norteadores para evitar abusos como o do quadrinho acima. Existem vários autores que podem embasar nossas discussões em sala de aula. Capez, Mirabete, Zaffaroni, Damásio, dentre outros não estão, portanto, descartados de nossa análise discursiva e devem ser consultados. Entretanto, para facilitar a discussão, o texto do Dr. Edihermes Marques Coelho pode ser um facilitador. Podem baixar o texto no link Fontes do Direito Penal numa perspectiva axiológica.
Leiam, tragam em aula. Abs.
Indico ainda um filme para que vocês reflitam
E também o filme Juízo, que disponibilizo em totalidade nos links abaixo:
"A liberdade é um direito inerente ao ser humano, é perfeitamente compreensível porque o homem, apesar da lei, tenta de todos as formas, mantê-la."
Ttortura: Fatores Individuais e Sociais - Uma Reflexão
Há poucos dias sentenciei dois acusados de tráfico e vi indícios contundentes, pelo menos em relação a um deles, de espancamento por parte de policiais militares. Inclusive sequer foi interrogado na delegacia porque necessitou ser internado no hospital. Condenei o outro, mas o que teria sido torturado foi inclusive absolvido, pois ficou comprovado que ele não contribuiu para a prática do crime. Até mesmo o Ministério Público pediu isso nas alegações finais.
Essas sevícias são comumente relatadas e encaminhadas ao Ministério Público, como urge fazer, para investigação.
Para quem estuda criminologia, existe uma teoria chamada de "Teoria das Subculturas Criminais". É como se houvesse um código próprio dentro de determinados grupos e que, diante da falta de meios de controle social eficazes, solidifica-se.
Assim, entre a chamada "malandragem" há todo um cabedal de gírias, de posturas, de estilo de se vestir, de locais comumente freqüentados, de gostos musicais. Já em relação ao meio policial estadual com quem tenho contato mais próximo, é bem verdade que a maioria é honesta e respeitadora, mas também não podemos fechar os olhos para uma realidade: infelizmente, banalizou-se a cultura da brutalidade, a autoatribuição da função de sensor moral sobre os que a ela estão submetidos - invariavelmente pessoas das camadas mais desprotegidas - naquele momento verdadeiras vítimas de castigos físicos e psicológicos por parte de algozes travestidos de agentes públicos.
Paradoxal e contraditória é a conduta do chamado "agente da lei" que, a pretexto de cumpri-la, viola-a! A despeito do que diz a Constituição e a legislação penal, arvora-se na posição de supremo legislador, acusador, julgador e executor de sevícias e desumanidades.
Se verdadeiras ao menos uma parte das acusações que são amplamente relatadas nos meios de comunicação, somente dois fatores as explicariam: um social, que seria a existência dessa cultura da violência, reinante pela conveniência e conivência do Poder Público; e um individual, fruto de uma mente doentia, de uma personalidade antissocial, que sob a ótica psicanalítica se chamaria perversa. Estando ambos presentes, completa-se a barbárie.
Em relação ao fator social, cabe uma reflexão sobre os dados trazidos pelo “Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen”, do Ministério da Justiça. Lá consta o seguinte em relação ao Estado de São Paulo* (dados de junho de 2010):
População Carcerária: 173.060 presos.
Crimes Contra a Pessoa (homicídios e correlatos): 17.113 presos.
Crimes Contra o Patrimônio (roubo e furto, basicamente): 101.949 presos.
Crimes Contra os Costumes: 5.141 presos.
Crimes Contra a Administração Pública (peculato, corrupção passiva e concussão): 110 presos.
Crimes de Tortura (Lei 9.455 de 07/04/1997): 20 presos.
E em relação ao Rio Grande do Norte* (dados de junho de 2010):
População Carcerária: 6.043 presos.
Crimes Contra a Pessoa (homicídios e correlatos): 786 presos.
Crimes Contra o Patrimônio (roubo e furto, basicamente): 1526 presos.
Crimes Contra os Costumes: 138 presos.
Crimes Contra a Administração Pública (peculato, corrupção passiva e concussão): 4 presos.
Crimes de Tortura (Lei 9.455 de 07/04/1997): nenhum preso.
Nos demais estados da Federação não deve ser diferente.
Sob a ótica individual, a psiquiatria explica alguns comportamentos flagrantemente patológicos. Já sob a social, acho que precisamos, Judiciário, Ministério Público e Polícia, fazer a nossa parte.
Aos meus novos alunos da AJES de Penal e Prática Jurídica Penal, deixo de entrada esta pérola para que reflitamos no nosso próximo encontro. Ah, moçada de IED deve ler também!!!
Este é um trecho da Carta de Rui Barbosa à Evaristo de Morais, onde ele reflete acerca do dever do Advogado.
"A alguns dos novos advogados deve, já, ter ocorrido, em sua
perturbadora perplexidade, aquilo que o profundo Picard
chamou “o paradoxo do advogado”; quero dizer: deve-lhes ter
sucedido refletir no suposto absurdo de poder um homem se
conservar honesto e digno, embora defendendo causas más e
grandes criminosos...
Quanto às causas qualificadas más, de natureza civil, não
me abalanço a discutir, aqui, o grave ponto, remetendo os colegas
para a aludida obrinha de Picard, em a qual, se me afigura, o
problema é resolvido. Muito me apraz, porém (e, decerto, toda
gente compreenderá por quê), comunicar-lhes, perante tão
honroso auditório, o meu sentir e o meu pensar acerca da defesa
dos criminosos, sejam grandes ou pequenos, tenham por si ou
contra si a formidável opinião pública.
Em princípio, a defesa é de direito para todos os acusados,
não havendo crime, por mais hediondo, cujo julgamento não
deva ser assistido da palavra acalmadora, ou retificadora, ou
consoladora, ou atenuadora, do advogado.
Após duas páginas e meia sobre a arbitrariedade da ausência de
advogado, mormente durante a Revolução Francesa, cuja lei não
concedia defensores aos conspiradores, volta aos dias e à sua experiência
de advogado criminal, aconselhando seus colegas:
"Tomai cuidado com os impulsos do vosso brio profissional,
com o impetuoso cumprimento do vosso dever, nesses casos de
prevenção coletiva: se seguirdes tais impulsos, tereis de suportar
desde os insultos mais soezes até à manhosa dissimulação das
vossas razões e dos vossos argumentos de defesa. Por pouco vos
dirão que tivestes parte na premeditação do crime e que, com
defendê-lo, só buscais o lucro pecuniário, o prêmio ajustado da
vossa cumplicidade na urdidura do plano criminoso.
Mas, se um dia tiverdes de vos defrontar com esta situação –
de um lado o infeliz que exora, súplice, o vosso patrocínio, de
outro lado, a matilha que anseia para o despedaçar sem processo
– recordai-vos das sentenciosas palavras desse que não tem igual
no seio da nossa classe, desse que é por todos os mestres reputado
Mestre e cujo nome fora supérfluo citar, de novo. Recebi-as eu,
como lição suprema e definitiva, em um dos mais angustiosos
Interessantes os vídeos a seguir para quem pretenda desenvolver a discussão acerca do poder, da prisão, da vigilância, da violência e do direito penal enquanto instrumento de controle social. O que mais me agrada nessa compilação é que, os três primeiros vídeos são criações da UFMT. Vale a pena ver de novo...
Este Desembargador é um dos responsáveis pela minha (de)formação acadêmica. Digamos que ele auxiliou neste processo de pensar, repensar e aplicar do Direito com uma visão mais humanista,e porque não, alternativa. Seus diálogos sobre Justiça acompanham a minha vida acadêmica e docente. Já pude agradecê-lo pessoalmente por esta referência, ocasião em que conheci a pessoa Amilton, despida da Toga, mas jamais de suas convicções e seu brilhantismo.
Hoje,embora distante, posso chamá-lo amigo e como humilde discípula, depois de tanto repassar o texto a seguir aos meus alunos retiro-o do armário empoeirado do meu HD e o posto neste blog à disposição daqueles apaixonados pela Justiça, como eu, que aqui um dia cheguem.
Tenho plena convicção que a luta pelo direito não possui neutralidade, mesmo quando nos colocamos como neutros, assumimos uma posição: a de cima do muro, a nossa, ou a do poder instituído. Prefiro o lado da Justiça.
Deixo o texto na íntegra para vocês. "LEI, PARA QUE(M)?
Amílton Bueno de Carvalho, Desembargador no Rio Grande do Sul
SUMÁRIO: I. Introdução; II. Crise da Legalidade – sua possível superação: os princípios; II. (a) Mas o que são princípios? II. (b) E suas características? II. (c) De onde vêm? II. (d) E sua aplicação? III. Mas e a lei, então, para que(m) serve? IV. E a lei penal?h
INTRODUÇÃO
O presente texto foi instigado pelo precioso amigo James Tubenchlak e vai em homenagem a ele: sua contribuição para o avanço da visão crítica no direito brasileiro marca este tempo em que se busca superar o olhar (e atuar) conservador (às vezes, reacionário) que alcança o senso comum dos operadores jurídicos.
A preocupação central de James – ao menos, a mim manifestada – está em que, principalmente no campo penal, a legalidade tem sido negada sistematicamente em prejuízo dos acusados. Mesmo entre os positivistas declarados há certa hipocrisia – consciente ou não – ao violar a base teórica que sustentam (Lyra Fº, aliás, já dizia: “a dominação é hipócrita” – “O que é Direito”, ed. Brasiliense, 4ª ed., 1984, p. 118).
Ao aceitar o desafio, procuro, neste trabalho, discutir (a) a crise da legalidade e sua possível superação, (b) a importância da lei e (c) quando se necessita da legalidade – em especial no campo penal.
Reitero o que tenho referido na quase totalidade dos meus textos: não tenho formação teórica agudizada, meu eventual saber emerge da atuação, por mais de duas décadas, como magistrado. Logo – e diferente não poderia deixar de ser –, sou marcado por este local de fala.
CRISE DA LEGALIDADE – SUA POSSÍVEL SUPERAÇÃO: OS PRINCÍPIOS
Cada vez mais fica claro entre os pensadores do direito que o princípio da legalidade está em profunda crise: a lei não consegue dar respostas suportáveis às situações que ela busca prever – seja pela inflação legislativa, pelo seu mau uso (e criação), pela impossibilidade lógica de alcançar a realidade que se altera brusca e incontrolavelmente, pela inconfiabilidade no legislador.
Germana de Oliveira Moraes (“Controle Jurisdicional da Administração Pública”, ed. Dialética, 1999) diz que:
“Como fruto da constante e renovada relação dialética entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ‘o direito por regras’ do Estado de Direito cedeu lugar, no constitucionalismo contemporâneo, ao ‘direito por princípios’” (p.19).
E, em momento seguinte, acompanha Paulo Bonavides;
“...com o declínio da primeira concepção do Estado de Direito, vinculado doutrinariamente ao princípio da legalidade, já superado pelo princípio da constitucionalidade, sob a égide do segundo Estado de Direito, no qual houve o deslocamento do centro da gravidade da ordem jurídica para o respeito aos direitos fundamentais” (p. 77).
O próprio Bonavides (“O Princípio Constitucional da Proporcionalidade e a Proteção dos Direitos Fundamentais” – Rev. da Fac. de Direito da UFMG, vol. 34, 1994, p. 281) vai um pouco mais longe ao entender que o “princípio da legalidade, com apogeu no direito positivo da Constituição de Weimar” está em “declínio, ou de todo ultrapassada”.
Elimar Szaniawski (“Considerações sobre o Princípio da Proporcionalidade” – Rev. dos Mestrandos em Dir. Econ. da UFBA, 1999, p. 512) segue na mesma linha:
“Na realidade, ocorre que o legislador moderno não atua mais dentro de um espaço de absoluta liberdade, tal qual agia ao tempo em que predominava o princípio da legalidade. Sob a égide do princípio da constitucionalidade, encontramos mecanismos que têm por fim limitar a liberdade do legislador, conquista do atual Estado de Direito”.
René David (“Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo”, p. 137) aponta que a “insuficiência da ordem legislativa”, “deixou bem nítido que o direito francês não se confundia com a lei”. Willis Santiago Guerra Filho (“Princípios da Isonomia e da Proporcionalidade como Garantias Fundamentais”, Ciência Jurídica, 1996, vol. 68, p. 297) entende que se está frente a “uma fase ‘pós-positivista’, com a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo”.
De logo – para além do vislumbrar da crise de legalidade rasteira, com a perda do caráter absoluto da lei – vê-se das citações anteriores que já se aponta para a forma de superar a legalidade insuficiente à previsão dos casos ou à busca de maior justiça aos resultados da aplicação: os princípios gerais do direito.
Em outro local, já me defini (“Direito Alternativo em Movimento”, ed. Luam, 4ª ed., p. 78):
“Outrossim, como a legalidade fria, muitas e muitas vezes, é entrave a decisões democráticas, busca-se ter o direito em construção, abandonando-se a visão de se o ter como dado. Ou seja, ousa-se criar ao invés de buscar apenas revelar o direito emergente do Estado.
“Então o limite passou a ser outro, ultrapassando a legalidade estreita, para alcançar os princípios gerais do direito do mundo civilizado (aqui se incluindo os direitos humanos).
“E estes princípios são tidos como históricos, construídos pela sociedade civil na sua caminhada em busca da utópica vida em abundância para todos. Estes princípios servem de norte interpretativo de todo o fenômeno jurídico e dão conteúdo racional ao ato decisório”.
II - (a) Mas o que são princípios?
Parece-me que a definição de Dworkin alcança bem o fenômeno: “uma norma que é mister observar, não porque torna possível ou assegura uma situação econômica, política ou social julgada conveniente, mas por ser um imperativo de justiça, de honestidade ou de alguma outra dimensão moral” (Francisco Balon Aguirre, “Sistema Jurídico Aguaruna e Positivismo”, in Qual Direito? Ed. Jajup, p. 19/20).
Todavia, vários são os olhares – em busca de conceituação – dos princípios:
Jesús Leguina Villa – cit. por Germana, op. cit., p. 19 – entende que eles “expressam e articulam os valores centrais, as representações jurídicas gerais e as opções básicas de cada sistema jurídico”. E Germana (p. 20) cita também Bonavides, são “a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder, e são compreendidos, equiparados e até confundidos com os valores”.
Elimar, no texto antes referido (p. 506/507), após citar Bandeira de Mello – que o tem como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele” – refere que os autores designaram-o como “as ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas”.
San Tiago Dantas (citado por Leoni Lopes de Oliveira, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Material”, Doutrina 2000, publicação Instituto de Direito, p. 369) entende que são “como uma síntese das normas dentro de certos limites históricos”.
Eros Roberto Grau (“Licitação sem Objeto”, Rev. Trim. de Dir. Público, v. 10, p. 95), criativo como sempre, entende que se constituem em direito pressuposto: a base do direito posto.
Vê-se, pois, que princípios são os valores centrais do espaço jurídico (tido como “construção histórica” do homem em busca da dignidade cada vez mais humana, logo, embora absolutos em determinado momento, não são “eternos”, nem “dados”).
São o pano de fundo a orientar a criação das normas e a própria exegese. Deles, como diz Elimar, são irradiadas e imantadas as normas: de onde partem e onde devem chegar, uma espécie de efeito “bumerangue”.
Os princípios são o momento mais importante (diria, até sublime) de todo o ordenamento porque “imperativo de justiça”, ou seja, fim de todo o direito – positivado ou não.
II - (b) E suas características?
Willis – op. cit. – assim esclarece:
distingue-se das regras porque prescreve um valor, enquanto estas descrevem “uma hipótese fática e a previsão da conseqüência jurídica”;
apresentam, ao contrário das regras, maior abstração; não se reportam “a nenhuma espécie de situação fática” (a ordem jurídica é concebida por normas com menor ou maior abstração, desde a mais concreta – sentença – até se chegar aos princípios);
embora as regras possam entrar em rota de colisão, ao ponto de se chocarem, com os princípios tudo é diferente: “não entram em choque, são compatíveis uns com os outros”, acomodam-se.
No meu entender, quando se dá choque entre norma e princípio, vigora este porque é o informador daquela (aliás, neste momento estamos autorizados a negar não só a validade, mas até a vigência – no viés ferrajoliano – das leis).
Hart, no “Postscriptum” em debate com Dworkin (“La Decisión Judicial” – el debate Hart-Dworkin”, Siglo del Hombre Editora, estudo de César Rodriguez, 1997, Bogotá, p. 119) tem quase que idêntico entendimento:
“El primero es una cuéstion de grado: los principios, en relación a las reglas, son generales o no especificos, en el sentido en que a menudo lo que se consideraria como un número determinado de reglas puede ser mostrado como ejemplificación o instancia de un principio único. El segundo rasgo seria que los principios, por cuanto se referien más o menos explicitamente a algún propósito, meta, facultad o valor, son considerados, desde cierto punto de vista, como algo que resulta deseable preservar o ser objeto de adhesión y que, por ende, no sólo suministran una explicación o racionalidad de las reglas que los ejemplifican, sino que al menos contribuyen a sua justificación”.
O próprio César (loc. cit., p. 50/52), forte em Dworkin, diz que as regras, ao contrário dos princípios, “operan dentro de un esquema de todo o nada”, por isso, prossegue, as “reglas son conclusivas y los principios son no-conclusivos”.
II - (c) De onde vêm?
A maioria dos doutrinadores entende que os princípios têm como “ambiência natural o texto constitucional” (Willis, loc. cit., p. 299).
Ou seja, a Constituição – como síntese do ordenamento jurídico – carregaria, implícita ou explicitamente, a principiologia (o pano de fundo, a reserva ético-valorativa, o centro irradiador-imantador) que orienta o sistema.
Assim, necessária a positivação – ao menos implícita – dos princípios.
Sigo linha diversa. Tenho que os princípios – enquanto reserva ética, repito – não necessitam, à sua aplicação/existência, estar positivados – na Constituição ou em outra disposição legal. Estão acima e para além de qualquer positivação.
Os princípios – desde meu ponto de vista – são – como conquistas da civilização – inclusive orientação e limite ao próprio Poder Constituinte: é um núcleo duro da cidadania que só pode ser relegado (repito, historicamente considerado) com a atuação da própria humanidade ao destruir princípios antigos e na construção de novos (o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é “pressuposto” – para seguir Eros –, neste momento histórico, da condição humana).
Eis o que diz Dworkin em sua crítica a Hart (já citada “La Decisión Judicial, p. 55): “... lá consagración positiva de los principios no es un requisito para su aplicación”, ... “la validez de estos principios radica justamente en sua aceptación en la práctica juridica”.
Eduardo Garcia de Enterria (“Reflexiones sobre la Ley y los Principios Generales del Derecho”, ed. Cuadernos Civitas, 1984, Madrid, p. 52/53), após “recordar que el Derecho excede necessariamente de la ley”, afirma que existem “principios supralegales”.
Bonavides (loc. cit., p. 283), ao escrever sobre a proporcionalidade, diz ser ele “princípio não-escrito, cuja observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto pertence à natureza e essência mesmo do Estado de Direito”. Diria mais: a proporcionalidade é regra além do Estado de Direito: é norma de vida – adequação entre meio e fim!
Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz (“A Concessão de Medida Liminar em Processo Cautelar e o Princípio Constitucional da Proporcionalidade”, Rev. Forense, 1992, vol. 318, p. 105) cita Canotilho: “os princípios beneficiam-se de uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito”.
Leoni (loc. cit.) traz a experiência alemã onde princípio (no caso que Leoni debate, o da “proporcionalidade”) “é reconhecido como norma constitucional não escrita” (p. 364), e afirma que eles “não precisam necessariamente estar previstos em lei”. Cita, na mesma linha, Nelson Nery Júnior: “não necessitam estar previstos expressamente em normas legais, para que se lhe empreste validade e eficácia” (p. 369).
Retomo René David (ob. cit., p. 138) que refere a decisões da Corte Constitucional alemã no sentido de que: (a) o direito constitucional não se limita à Constituição, mas alcança “certos princípios gerais que o legislador não concretiza numa regra positiva”; (b) existe “um direito suprapositivo que vincula o próprio legislador constituinte”; e (c) a idéia que o constituinte pode tudo fazer “significaria um retorno a um positivismo ultrapassado” (p. 138).
Neste quadro – núcleo do sistema, logo “indiscutíveis e indisponíveis, como patrimônio da civilização” (Winfried Hassemer, “Segurança Pública no Estado de Direito’, Ver. Ajuris, 62, p. 162), com valor além do ápice piramidal kelseniano – fica patente sua importância como instrumental à superação da legalidade rasteira.
Para Bonavides (ao debater a proporcionalidade), com ele “os juizes corrigem o defeito da lei”, bem como superam as “insuficiências legislativas” (p. 278); cria “ascendência do juiz-executor da justiça material – sobre o legislador”, mesmo porque o legislador “deixou de mover-se com a inteira liberdade do passado” e o juiz “atua por um certo prisma em espaço mais livre” (p. 282).
O constitucionalista de vanguarda Luis Roberto Barroso (“Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Constitucional”, Rev. Forense, p. 336/70) cita San Tiago Dantas: a agressão aos princípios “produz sensação íntima do arbitrário, traduzida na idéia de lei injusta”.
E Dworkin fala que eles, embora funcionem diferente das regras “son igualmente obligatorios, en tanto deben ser temidos en cuenta por cualquier juez o intérprete en los casos en que son pertinentes” (“La Decisión Judicial, p. 36).
Um exemplo que quase todos os estudiosos do tema citam – aliás, de todo esclarecedor – é decisão do S.T.J., de 1994, que entendeu que agride ao princípio da “razoabilidade e caracteriza desvio ético jurídico a norma que concede a servidor inativo a gratificação de férias atribuída aos servidores em atividade” (Leoni, loc. Cit., p. 376): a superação do irracional deu-se via princípio não-positivado!
II - (d) E sua aplicação?
Ainda é restrita. Muito menor do que o esperado em busca de dar racionalidade (leia-se, justiça) à ordem (im)positiva.
É que – ao meu sentir – nós, operadores jurídicos, enquanto regra, somos positivistas-legalistas. Trabalhamos com a hipótese subsunçora da lei ao fato.
Parece-me que o alto grau de abstração, próprio dos princípios, gera pânico: carrega falsa idéia de insegurança. É que nosso senso comum é forjado à aplicação da norma visível que exige mínimo – às vezes nenhum – esforço intelectual.
Não somos “programados” para abstração – exige criação e não mera repetição do saber manualesco. Ao abstrair, torna-se impossível encontrar modelo já fabricado: somos forçados ao novo.
Não logramos, pois, descobrir o invisível que está por detrás da realidade aparente, como ensina Michel Mialle (“Uma Introdução Crítica ao Direito”, ed. Moraes, Lisboa, 1ª ed., p. 18), e tudo fica – cansativamente – como está: a nossa empolada retórica é mesmice espetacular!
MAS E A LEI, ENTÃO, PARA QUE(M) SERVE?
Se é certo que o princípio da legalidade está em declínio e se busca sua superação via princípios gerais de direito, pertinente questionar: qual, então, sua utilidade?
Em verdade, o que se tem dito – e procurado comprovar – é que a lei perdeu o cunho de dogma, verdade absoluta, inquestionável, deixou de ser a fonte única do direito e com importância inferior aos princípios: categoria superior.
Todavia, a lei – escrita ou não – é indispensável à vida social (o homem só é homem porque existe o outro). Não se vislumbra possibilidade de respeito a si e ao outro sem lei.
A lei – desde meu ponto de vista – diz necessariamente com limite. É, sempre e sempre (eticamente considerada) sua própria razão de ser: limite ao poder desmesurado.
Em outras palavras: a lei é limite à dominação do mais forte.
Num primeiro momento, ela é limite a mim mesmo, ou seja, é limite interno ao próprio indivíduo.
Há precioso trabalho de Carlos Affonso Pereira de Souza e Patrícia Regina Pinheiro Sampaio (“O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional”) publicado na Revista Forense, vol. 350, p. 29 e seguintes, onde a partir de Freud “tudo se explica”:
“...entende o pai da psicanálise atuar a lei como forma de repressão ao poder desmesurado, ou seja, oferecendo ao indivíduo na esfera do inconsciente a proteção de uma figura paterna. Considerando a lei como um pai substituto...”
E o “pai”, diz o psicanalista Mario Corso (Caderno de Cultura, jornal Zero Hora, 11.11.2000, p. 7), é aquele que tem a “função de separar mãe e bebê” (“mãe” enquanto “lugar de origem”). Ao lograr a “separação”, o bebê se encontra enquanto individualidade e reconhece a existência do outro, enquanto outro.
Pois bem. Na fantasia, tenho poder desmesurado, espetacular, destruidor, logo necessito um limite a este poder, o qual (limite) me é dado pela “figura paterna”: esta é a lei.
Aliás, sabemos todos que a delinqüência (aqui no sentido amplo, não no mero positivado) diz com a ausência de limite: a destruição do outro ou o outro como sem significado – extensão do um. E a perda do limite internalizado faz com que se o busque no pai-Estado-prisão.
Num segundo momento, a lei diz com limite ao outro frente a mim. É a proteção que o “eu” tem que o outro não me “destruirá”. É a proteção que o pai-lei me assegura: “vou ser agredido? O ‘pai’ vai me socorrer”.
O poder desmesurado do outro é contido: se ele, por si-mesmo, não me respeita, a lei deverá “impor” a condição de civilidade.
Num terceiro momento, a lei diz com limite ao soberano: a contenção do poder do próprio Leviatã. Em outras palavras, o poder do pai-Estado deve ser limitado. Ele, pai-Estado, não tem direito ao poder sem limite: o legislador não pode fazer tudo o que quer – aliás, é o que se tratou anteriormente ao se buscar conter a legalidade abusiva através dos princípios gerais do direito.
Assim, como limite ao poder desmesurado – meu, do outro, do Estado – a lei é absolutamente indispensável como condição de humanidade. Talvez por isso Ferrajoli entenda que sequer “ninguna mayoria, ni siquiera por unanimidad, puede legitimamente decidir la violación de un derecho social” (“Derechos y Garantias”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 24).
Em definitivo: a “lei” deve “me proteger” mesmo contra a unanimidade!
É bem verdade que a função da lei, eticamente considerada, desde muito tem sido desvirtuada: muitas vezes, deixa de ser limite ao poder desmesurado, para ela mesma ser fonte de opressão – de limite à dominação se transforma em instrumento dominador.
Enterria (loc. cit., p. 27/28) bem esclarece:
“La sociedad actual no las comparte ya, y, mucho más, ocurre todavia que, como un resultado de la experiencia histórica inmediata, há comenzado a ver en la ley algo en si mismo neutro, que no sólo no incluye en su seno necessariamente la justicia y la libertad, sino que com la misma naturalidad puede convertirse en la más fuerte e formidable “amenaza para la libertad”, incluso en una “forma de organización de lo antijuridico”, o hasta en un instrumento para “la perversión del orden juridico”.
Alberto Binder (“Entre la Democracia y la Exclusión: la lucha por la legalidad en una sociedad desigual”, palestra no “II Taller sobre la Red Latinoamericana de Magistrados y Funcionarios Judiciales por la Democratización de la Justicia) vai mais longe:
“No podemos pretender que los distintos sectores sociales se entusiasmen y utilizen la legalidade si ella es sinónimo de trampa, laberinto, falsedad, engaño, sutileza fútil, tibieza, farsa y privilegio encubierto”.
Sobre a lei enquanto instrumento de dominação, e especial na sociedade capitalista, ouso remeter o leitor a texto que produzi “A Lei. O Juiz. O Justo”, publicado no meu “Magistratura e Direito Alternativo”, ed. Luam, 5ª ed., p. 24/48.
A rebeldia primeira contra a lei que perde sua finalidade – melhor dito, que tem a finalidade desvirtuada – vem dos jusnaturalistas.
Em texto publicado na Revista de Investigaciones Juridicas, nº 24, p. 413/426, ano 2000, de Aguascalientes, “Democracia y Ley Natural desde el iusnaturalismo católico de Suárez”, o precioso jusfilósofo mexicano Jesús Antonio de la Torre Rangel, recolhe de Francisco Suárez a lição seguinte: “una ley injusta no es ley”...”hablando en sentido proprio y absoluto, solamente puede llamarse ley, la que es medida de la rectitud sin más, y, consiquientemente, sólo la que es regla recta y honesta”.
E deve ser recusada obediência: “1º. Si se trata de una ley injusta; 2º. Si aun no siendo injusta, es demasiado gravosa; y 3º. Si de hecho la mayor parte del pueblo no observa la ley”.
Mas, então, para que(m) serve a lei?
A lei é limite ao poder desmesurado – leia-se, limite à dominação. Então, a lei – eticamente considerada – é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação.
Sua importância é, pois, espetacular: combate à opressão!
E, por conseqüência, o juiz enquanto “aplicador” deste tipo de legalidade é também protetiva ao débil.
Em outro texto, Jesús Antonio (“Critérios filosóficos-jurídicos para Administrar Justicia de Alonso de la Vera Cruz”, Caleidoscópio, Univ. Autonoma de Aguascalientes, México, nº 1, p. 126) cita Porfírio Miranda:
“cuando en la historia se ideó la función de un juez.... fue exclusivamente para ayudar a quienes por ser débiles no pueden defenderse; los otros no lo necessitam”.
Aliás, é até disposição da Bíblia:
“Falem a favor daqueles que não podem se defender. Proteja os direitos de todos os desamparados. Fale por eles e seja um juiz justo. Proteja o direito dos pobres e necessitados” (Pr. 31.8.9).
A crítica – sempre agudizada – de Ferrajoli também se faz presente (quanto ao papel do juiz):
“...puesto que en ningún sistema el juez es una máquina automática, concebirlo como tal significa hacer de el una máquina ciega, presa de la estupidez o, peor, de los interesses y los condicionamientos de poder más o menos ocultos y, en todo caso, favorecer su irresponsabilidad política y moral” (“Derecho y Razón, p. 175).
E em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El contexto extraprocesal”, p. 46):
“Sobre todo la conciencia profesional del juez como tutor y garante, frente a los poderes tanto públicos como privados, de los derechos fundamentales de los ciudadanos”.
No que refere a lei enquanto fenômeno de proteção ao mais fraco, o próprio Ferrajoli em três momentos defende a tese:
“O Estado Constitucional de Direito Hoje: o Modelo e a sua Discrepância com a Realidade”, palestra apresentada em 1994, seminário dos Juízes para Democracia espanhola: “... na consciência de que os direitos fundamentais são sempre leis do mais fraco contra a lei do mais forte...”
Seu livro mais específico: “Derecho Y Garantías – La Ley del más Débil”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 54: “Los derechos fundamentales se afirman siempre como leyes del más débil en alternativa a la ley del más fuerte que regia y regiría en sua ausencia”.
no clássico “Derecho y Razón”, p. 335, neste momento na vertente do direito penal que se analisará no capítulo seguinte.
Ressalto, ao final, que lei do mais débil, lei do mais fraco, pode ser sintetizada como lei do pobre porque “el pobre, como expresión de lo humano, por la violación sistemática de su esfera vital dará siempre la pauta de esta búsqueda histórica de la vigencia real de los derechos humanos, la justicia y el bien común” (David Sánchez Rubio, “Filosofia, Derecho y Liberación en América Latina, Desclér, Bilbao, 1999, p. 183).
Mas pobre enquanto categoria sociológica. É que “la categoria pobre es amplia y abarca todo tipo de pobreza, desde la miseria del hombre hasta la falta de justicia y derechos, la desigualdad, la opresión, la falta de libertad, el compromiso de la fe por la degradación del hombre” (José de Souza Martins, citado por Jesús Antonio de la Torre Rangel, “Sociologia Juridica y Uso Alternativo del Derecho”, ed. Inst. Cultural de Aguascalientes, 1997, México, p. 37).
E A LEI PENAL?
Se a lei é sempre a lei do mais fraco, o arsenal interpretativo do direito penal tem que resolver a primeira questão básica: quem é, aqui, o débil (a partir de cuja “totalidade” olhar-se-á o fenômeno penal, ou seja, desde onde serão apreciadas as normas)?
Salo de Carvalho (“Descodificação Penal e Reserva do Código, publicação ITEC) bem esclarece: “... o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”.
Ferrajoli, vez mais, ensina:
“Es más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en el delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios com el”
...
“Bajo ambos aspectos la ley penal se justifica en tanto que ley del más débil, orientada a la tutela de sus derechos contra la violencia arbitraria del más fuerte” (“Derecho y Razón”, p. 335).
Em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El Contexto extraprocesal”) ele é mais incisivo:
“En la tradición liberal-democrática, el derecho y el proceso penal son instrumentos o condiciones de “democracia” sólo en la medida en que sirvam para minimizar la violencia punitiva del Estado, y constituyan por tanto – antes que un conjunto de preceptos destinados a los ciudadanos y de limitaciones impuestas a su libertas – un conjunto de preceptos destinados a los poderes públicos y de limitaciones impuestas a su potestad punitiva: en otras palabras, un conjunto de garantias fundamentales del ciudadano frente al arbítrio y el abuso de la fuerza por parte del Estado”.
Na mesma linha, ou seja, o penal enquanto garantia do cidadão-réu contra o perseguidor, veja-se o brilhante livro de Adauto Suannes, “Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Legal”, RT, 1999, p. 128/154.
Supera-se, assim, a questão básica: o débil (ou o pobre, enquanto categoria sociológica) no direito penal é o acusado – deve ser protegido, pois (exclui-se a ótica oriunda da “lei e da ordem” que o vê como instrumento da vítima, ou dos “homens bons”, na busca desesperada da punição).
Como, então, olhar a lei penal desde o ponto de vista do mais fraco?
Em dúplice diretiva:
na direção punitiva/perseguidora, a interpretação – aliás, já o disse em outro local (“Aplicação da Pena e Garantismo”, em parceria com Salo de Carvalho, ed. Lumen Juris, 2001, p. 124) – deve ter força centrípeta: a imantação é para o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível ao acusado, diria Ferrajoli).
Neste momento, a lei – garantia espetacular ao cidadão, tanto que o penal segue o princípio da legalidade – protege o cidadão-réu.
Assim, tudo vai em direção ao “núcleo duro” (diria Hart, “La Decisión Judicial”, p. 33) do tipo. É que as normas penais – agora diria Dworkin (“La Decisión Judicial”, p. 36) – “son reglas precisas”.
Eis o momento precioso da lei: em momento algum ela pode ser ultrapassada em prejuízo do débil. Aqui, aplicar a lei é como diria David Sánchez Rubio (loc. cit., p. 242) “una actuación revolucionária”.
Importante – desde meu ponto de vista – se tenha claro a força centrípeta quando se persegue o cidadão (o “príncipe” no penal) frente a constante violação da legalidade (repito: aqui protetiva, logo deve ser obedecida) quando se olha a lei como instrumento de dominação.
Um exemplo tenho como esclarecedor: o artigo 157, § 2º, I, do Código Penal Brasileiro, majora a pena de um terço até a metade quando o agente, à violência ou à ameaça, faz “emprego de arma” (art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa... § 2º. A pena aumenta-se de um terço até a metade: I. – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma).
A interpretação na direção ao “núcleo duro”, com vistas a “reglas precisas”, ou seja, na proteção do débil – a “centrípeta” porque persegue o cidadão –, arma só pode ser instrumento destinado ao ataque, a fazer mal, a causar dano físico.
No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nega vigência a lei ao “alargar” a interpretação, agredindo, assim, a proteção ao cidadão, ao sumular o entendimento que, para fins de majoração, entende-se que revólver de brinquedo é arma.
O Terceiro Grupo Criminal do Rio Grande do Sul (E. I. 70 00/653 666), através de voto do precioso Des. Aramis Nassif, com argúcia, ataca o entendimento sumulado. O voto de Aramis vai transcrito:
“A arma de brinquedo não pode ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo e. STJ. É que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal exasperante através de decisão judicial. Contrário sensu vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...). Mas, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Por maioria, acolheram os embargos.”
“... Sr. Presidente. 2. Acolho os embargos no sentido de reconhecer prevalecente o voto vencido. E a razão é a obviedade conceitual, material, visual, palpável de que revólver de brinquedo é brinquedo e arma é arma.
Ou não?
Se não, certamente que vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...)
Não existe mais brinquedo.
Mas eu tinha certeza que aquilo que eu tinha era um brinquedo (eu só tinha cinco anos de idade e sabia disto!)
Ou será que meus pais dar-me-iam uma arma?
Será que era uma arma e eu não percebo? Mas não seria uma brutal irresponsabilidade?
Mas eles eram tão cuidadosos e, por isto, não acredito que eles deixariam eu brincar com uma arma...
Bem, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Aliás, meu pai não deixava eu tocar no revólver verdadeiro que mantinha distante de meu alcance. Porque era uma arma, dizia ele. Será que ele estava me enganando e o que ele guardava com tanto cuidado era um brinquedo?
Não acredito, por isto, que a jurisprudência brasileira tenha o poder mágico de transformar um brinquedo em arma.
Afinal, a norma (art. 157, I, CP) não fala em emprego de arma? Não achei no meu Código expressão ou termo como emprego de brinquedo que autorizasse tornar a sanção mais severa. Não achei...
Como ampliar conceitos para prejudicar o réu?
A arma de brinquedo não pode, pois, ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo Eg. STJ. É, como disse acima, que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal.
Mas é eficaz para caracterizar o roubo. É que a capacidade intimidatória subjuga a vítima, impedindo que possa defender o bem jurídico atacado pela ação criminosa. Estou convencido que, pelo efeito intimidatório produzido na pessoa atacada, o emprego do simulacro pode caracterizar a grave ameaça, esgotada no plano psicológico e, assim, erige em roubo a atividade delinqüencial.
Todavia, vejo distância inalcançável entre este efeito e a majorante do artigo 157, § 2º, inciso I, do Código Penal, mesmo que, com tal convencimento, esteja contrariando a Súmula 174 do Eg. Superior Tribunal de Justiça. Acontece que, se é certo que arma de brinquedo desloca o modelo típico para o roubo, pelo arrasador efeito sobre a vítima, não pode ser conceituada, materialmente, como arma.
O espírito das majorantes é impor ao condenado um plus na sanção para o efeito de atender os princípios da necessidade e suficiência da pena. Assim, se o agente perpetra delito em circunstâncias que inflige à vítima especial sofrimento, físico ou mental, merece que sua pena seja exasperada.
Mas estou convencido de que, se presente a grave ameaça, jamais esteve presente a arma. Significa dizer que, de certo modo, o agente corre maiores riscos e a perspectiva de frustração do ato criminoso é muito maior se empregar um brinquedo como arma ante eventual reação da vítima ou de terceiros. Ele é, assim, pessoa menos perigosa do que aquele que, empregando arma verdadeira, gera, além da coação à vítima, sério risco à sua integridade física e, por tal, não pode sofrer as mesmas conseqüências penalizadoras.
Será que estive enganado por cinqüenta anos e o STJ, através de uma Súmula, veio revogar minha ignorância? Com a devida vênia, fico com a verdade de meus pais, pois eles eram responsáveis, sensíveis, humanos, enfim... Não estavam presos a delírios provocados pela fúria punitiva irracional que inspirou a sumulação. E para eles brinquedo era brinquedo, arma era arma...
O voto é no sentido de acolher os embargos e fazer prevalecer o voto vencido.
É o voto.”
Penso nada mais necessário dizer.
No entanto, quando para beneficiar o débil no direito penal entendo que a interpretação deve ter força centrífuga: dirigida para fora, na direção libertária.
Neste momento, ao contrário do que se fez o S.T.J. – arma de brinquedo como arma – o olhar interpretativo deve ser extensivo. Aqui os princípios gerais do direito são – como se viu no capítulo anterior – o instrumento hábil para combater injustiças, perseguições inócuas, excesso legislativo.
Salo escreve (local citado):
“Importante notar, contudo, que a exclusão das fontes materiais em matéria penal (v.g. analogia, costumes, jurisprudência, doutrina e direito penal comparado) diz tão-somente ao processo de interpretação criminalizadora e/ou penalizadora. Tal proposição não esgota toda esfera penal ao pressuposto da legalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo as fontes materiais das possibilidades judiciais. Sua negação é restrita aos processos de inclusão, não aos de exclusão da pena ou do delito (v.g., causas supra-legais de exclusão de tipicidade, ilicitude e culpabilidade).
Aliás, Alberto Silva Franco bem apanhou o papel do juiz neste espetáculo (“O Compromisso do Juiz Criminal no Estado Democrático”, Justiça e Democracia, nº 3, p. 270/271):
“Juiz penal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do estado leviatânico”
...
“é em resumo, ser o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo. E seria melhor que nem fosse juiz, se fosse para não perceber e não cumprir essa missão”.
Então, lei para que(m)? Para proteção do pobre (enquanto categoria sociológica) frente ao poder desmesurado.