Foi decretado o
retorno ao Faroeste caboclo no Brasil. Com sentimento de tristeza e pesar de
quem percebe que a medida legal só terá como resultado o aumento da violência.Minha posição sempre foi contrária à posse de
arma. Penso nas vítimas que agora vão perecer na mão de pessoas despreparadas e
mentalmente desajustadas como o Ministro da Casa Civil que compara uma arma a
um liquidificador quanto ao perigo.
Comemoram os
donos da Taurus, comemoram os Bolsominions.
Eu, no entanto,choro pelas crianças, pelos adolescentes,
pelos índios, pelos mendigos, pelos negros, pelos LGBTs, pelas mulheres, pelos
idosos, pelos jovens…Minhas lágrimas antevem o resultado
dessa política nefasta que não se preocupa com as causas da insegurança criando
mais do mesmo. A memória me leva de volta a uma infância onde a posse de arma
era permitida; recordo de meu pai e da violência com que ele agia na minha
infância.
Minha mãe foi
vítima de mais de uma tentativa de feminicídio por ele antes de eu completar
treze anos. Lembro do revolver na sua cintura, dos dias em que em desequilíbrio
saia porta a fora armado e dizendo que ou ia se matar ou matar alguém. Recordo
que eu e meusirmãos chorávamos e
rezávamos para não ficarmos órfãos. Lembro cenas de horror. Tiros para a rua
porque o time de futebol ganhou ou perdeu, sentir-se mais homem com uma arma
nas mãos. E dou graças a Deuspor que
esta arma não existe mais.
Mas agora são
homens assim que vão sair correndo comprar uma arma para ostentação: inseguros,
imaturos, desequilibrados, despreparados como era um conhecido meu que ia
armado para os eventos. Recordo do dia
que ele matou três de meus amigos em uma discussão, tudo terminou tragicamente
porque o cidadão tinha uma arma de fogo ao seu alcance. Recordo o choro da mãe
enterrando seus três filhos e de minha melhor amiga que tinha só 12 e chorava porque não tinha mais irmãos e já havia
perdido o pai baleado. E também da pena que o rapaz recebeu pelo triplo homicídio. No mesmo dia, perdi quatro amigos.
Recordo do meu
padrasto armado correndo na rua atrás de alguém que tentara entrar em casa à noite. Meu padrasto podia ter levado um tiro se o rapaz também estivesse armado, porque se sentiu tão poderoso que esqueceu até
que estava só de cueca e revólver a correr na rua tentando capturar o sujeito. E, me lembro das vezes que tirei o
tauros 38 das mãos de meus irmãos menorese curiosos que procuravam por toda casa até encontrar o revolver para
brincar. E se eu não chegasse a tempo, seria como cortar o dedo no
liquidificador? Duvido muito.
Graças a uma arma na mão da pessoa errada, um amigo bombeiro que foi morto
pelo sogro com disparo de sua arma de fogo em uma discussão banal. Cabeça quente e arma na mão é indício
de tragédia. E falando nela, recordo do assalto que sofri dentro de casa com
toda minha família refém de uma arma e quatro indivíduos no Mato Grosso, se ali existissem quatro armas, elas
acabariam parando no arsenal deles, pois teria sido impossível reagir sem
balear alguém da minha família. Recordo
de outra vez que fui assaltada no Rio de Janeiro e fiquei entre a arma do ladrão e a do segurança
da empresa para onde corri em busca de ajuda, numa cena de faroeste com tiros
para todo o lado. Naquele dia só o que eu queria era chegar em casa e abraçar
meu filho, mas sei que se eu portasse uma arma naquele momento, estaria morta hoje. Recordo da minha babá embaixo da cama no morro enquanto o tiroteio corria solto, do pavor. E da noite em que o tiroteio saiu do morro para a porta da minha casa. Deitei no chão e chorei como criança e se tivesse uma arma naquele momento de nada me adiantaria. Lembro das balas traçantes, lembro que não era mais seguro quando meu pai tinha um revólver para brincar de mocinho, na verdade ele se transformava em nosso algoz.
Me sinto pesarosa diante das pessoas que estão pagando para ver, os inocentes úteis. Sei que os índices da violência vão aumentar em casa e na rua no Brasil. Sei
que as futuras vítimas armarão a mão do bandido com sua arma comprada em mil prestações
nas casas Bahia. Sei que crianças vão morrer por acidente, outras vão ser
baleadas em sala de aula por coleguinhas que serão presos e jogados no presídio
se tiverem 16 anos ou mais. Sei que o feminicídio aumentará, assim como o
genocídio indígena, como o assassinato de gays, lésbicas, trans e qualquer um que ouse
dizer diferente; assim como os estupros, as ameaças, a morte. É para proteger os cidadãos de bem que essa lei foi feita? Realmente não!
Quem vai lucrar com isso? Quem lucra levando o homem de volta à Lei de Talião?
Não é preciso ser muito inteligente para perceber, mas estamos cegos. Há quem acredite
que é como quando eramos criança e brincávamos de bandido e mocinho… Só que
não! Só que não!
Se a liberação de armas levasse ao fim da violência, quem assinou o decreto com caneta Bic com certeza teria reagido e garantido sua propriedade fazem alguns anos. A caneta genocida e seu dono estão escondidos em carros blindados e atrás de seguranças armados. Já nós, pobres somos mortais.
Uma coisa é verdade, fica bem mais fácil perder a vida depois disso, pois as armas estarão a mão de uma sociedade deprimida facilitando o suicídio e a morte acidental. Muitas mães chorarão por isso, a maioria negra e pobre. A lista do Papai Noel bélico da gurizada dos homens de Bens vai ser interessante; papai eu quero uma arma... e ela ali estará, aguardemos.
(Andréa Madalena Wollmann, Advogada, Mestre em Política Social UFF, Doutoranda em Filosofia Jurídica pela Universidade de Coimbra, Bolsista CAPES DPE.)
Esse texto não tem o objetivo de ser uma espécie de guião de pesquisa. Também não tem intuito de demonstrar o caminho seguro por onde o pesquisador na área do Direito ou mesmo da filosofia jurídica deva se conduzir. A pergunta que move essa análise breve é simples: existe a possibilidade de uma pesquisa não tendenciosa no direito?
Não quero com isso desestabilizar as certezas e conclusões obtidas por pensadores sérios, debruçados em objetos jurídicos por anos para tecer seus comentários e considerações. Muito menos ouso aqui contestar o mister da cientificidade de seus métodos de análise que revestem suas conclusões do viés da verdade científica epistemológica tão em voga. Ao contrário, ou não, como diria Caetano Veloso, se permitirmos um pouco de ironia providencial.
Creio que o dizer a verdade tem sido a grande angustia social, e ao nosso modo de ver, cada ângulo de visão, mesmo o mais restrito é verdadeiro àquele que o emite diante da miopia com que conduz sua percepção e a pressa com que apura suas conclusões. No mundo do google então… O fato é que nunca antes buscamos tanto afirmar a "segurança de nossas analises" e nunca antes profetizamos tanto verdades tão antagônicas diante da interpretação divergente na leitura dos mesmos autores. Porque isso se dá?
Mesmo consultando Humberto Eco e tentando aprender como se faz uma tese, corremos o erro de cair naquilo que Warat chamava de senso comum teórico jurídico, ou o que refiro ser axômetros pinguinizados disfarçados de teorias científicas. E o jurista sabe muito bem ser conduzido por suas paixões de forma a perder o prumo da análise, buscando primeiro ter razão para depois racionalizar algo, tendenciosamente excluindo esse e aquele que discordam do seu ponto de vista, temos que reconhecer. E a partir de discursos muitas vezes baseados na falácia da autoridade, vamos repetindo irrefletidamente o senso comum teórico cristalizado e chamamos visões destoantes de parciais.
Pergunto: será que alguma análise em áreas do conhecimento que não se permitam a transdisciplinaridade a multidisciplinaridade ou a interdisciplinariedade e o pensamento crítico conseguem ser totais? Ou ainda, será que em algum momento conseguiremos compreender a totalidade de um objeto? E se assim o fizermos, por quanto tempo se manterão as conclusões apontadas em nosso método de análise? Talvez até que pelo mesmo método se aponte novo olhar sobre o mesmo objeto visto de um ângulo que ignoramos (quer voluntária, quer involuntariamente).
Pois bem, esse texto não pretende ser como já referi, o algoz das teses e conclusões de pesquisas apontadas. Ao contrário, louvamos quem ouse nos dias de hoje dedicar seu tempo mais as pesquisas que ao facebook, ao WhatsApp ou outra forma de repercussão e rápida veiculação do “conhecimento”.
Mesmo pensando em Marilena Chauí (e me perdoem o método de citação da ABNT, ignorado aqui propositalmente), em seus textos sobre conhecimento científico e senso comum, mesmo discorrendo sobre a importância do método na contraposição de ideias e conclusões ao invés da discussão infundadas dos achismos por aí, me permito dizer aqui, o que penso e não somente me basear nesse ou aquele autor. Carnavalizei como diria Warat. E nesse processo de carnavalização permito refletir sobre o que a cada momento presencio na academia. A exclusão e a absorção de literaturas ao sabor do modismo desse ou daquele Doutor nisso ou naquilo, ou daquele orientador ou ainda daquela corrente teórica admitida como suprassumo. A soberba do repasse de nosso ponto de vista sobre isso ou aquilo ao arrepio dos métodos de análise mais simples diante de outros objetos científicos (qualitativo, quantitativo, bibliográfico, documental, etc.). A auto promoção de egos e pontos de vista no campo do "saber". O me cita que eu te cito. O diz que me disse, tantas vezes, literal e visceral da epistemologia jurídica tendencial.
Talvez ao reconhecer nossa tendencialização teórica, eu, humildemente, parta aqui para uma nova proposta de explicitação de ideias mais adequada com a realidade de nossas posturas cientificas que, muitas vezes, escondem no véu dessa desculpa hermenêutica nossas posturas políticas, nossa visão de mundo mais à esquerda, mais à direita, mais ao centro, mais reflexiva ou apenas “papagaial” e irreflexiva, que tanto se propaga nos artigos que se ampliam pelo mundo dos livros coletânea, revistas “especializadas” em tudo e em nada, e mesmo, reportagens televisivas de “experts” que incutem ainda mais preconceitos aos desavisados do mundo. Frase grande, não?
E se Foucault já nos alerta para os discursos de poder. Se Freud nos posiciona ante ao mal-estar da cultura, também me permito eu, escandalizar-me e escandalizar ao leitor nesse desabafo de uma doutoranda em meio a sua pesquisa de tese. E mesmo que este não seja um texto científico se consideramos a especificidade do método de análise desposado, pode ser considerado uma boa peça literária.E que venham as críticas fundamentadamente redigida e sempre bem-vindas! Afinal quem sou eu para dizer tal coisa, não é mesmo?
Por fim, como sobreviver a mente reflexiva diante do holocausto, da seletividade e dos modismos doutrinais? Com percepção curiosa. De espinha reta onde o pesquisador olha o horizonte buscando, ao menos, refletir e ampliar sua compreensão do mundo em uma realidade que, como bem disse Sócrates, a filosofia ajuda a perceber que diante desse mar de incompreensão de teses compreendidas: só sei que nada sei. E como respondi outro dia a um professor da universidade de Santiago de Compostela a quem muito respeito, que me perguntava se eu era idealista e queria mudar o mundo, penso que as utopias construíram caminhos para novas realidades, os utopistas lançaram novas ideias, os revolucionários, lutaram e lutam por sua implementação e os pensadores devem perceber sua função social de reafirmar os compromissos com a liberdade e a fraternidade, assim, se por hora, não podemos mudar o mundo rapidamente, que ao menos não contribuamos para o resgate de teses sectaristas para que não voltemos nos mesmos erros do retrocesso dantes leviatânico, relembrando aos outros como foi difícil conseguirmos chegar a este ponto de debate, diante de séculos de holocausto e escuridão.
Hoje faz 25 anos que fui mãe pela primeira vez. Era 1988 e eu, com meus
15 anos, não tinha muita consciência do que era ter a responsabilidade
de orientar uma vida. Também não tinha
muita noção sobre política. Cresci numa ditadura, a Constituição Cidadã
estava prestes a ser promulgada. Acreditava que a realidade do meu filho
seria melhor que a minha, com direitos e liberdade.
Engraçado refletir sobre o tempo e os sonhos... Parece que foi ontem, eu
que era o futuro do Brasil trazia ao mundo um novo participe do futuro.
Um cidadão que veria um Estado Constitucional (não que eu tivesse
alguma real consciência, como tenho agora, do que isso significava, mas
compunha a sociedade do sonho democrático mesmo assim). Naquele tempo, amava meus professores, muito embora, como muitas
brasileiras mães juvenis, tive que abandonar por um tempo os bancos
escolares pelas fraldas de pano e mamadeiras. Não tardou, voltei a
escola noturna, queria um futuro melhor para meu filho e lá, aos 21
anos, fui mãe pela segunda vez... Foram meus professores que me ensinaram a indignação, a luta e a
consciência política em cada greve que eu não compreendi.
Com o tempo,
percebi que não bastavam as leis, eu devia conhece-las para saber me
defender, defender meus filhos, meus vizinhos e também, aqueles que eu
não conhecia mas que via nas ruas, nas filas dos hospitais, nas calçadas
frias. Quis fazer direito, ser advogada, defender os "frascos e
comprimidos" em um Estado Democrático de Direito.
Meus filhos, participaram dessa caminhada. O que faz aniversário hoje,
se tornou idealista também, é Assistente Social. E eu, que sonhara ser
professor, dediquei meus anos a essa árdua tarefa, só que agora, em
nível universitário. Percebi que não basta um Estado de Direito quando os que dispõem desse
conhecimento compartilham o abuso do direito, com sua omissão e mesmo
submissão ao sistema. Nessa caminhada pelo direito, me tornei
constitucionalista, cientista sociopolítico e, nos últimos anos,
criminóloga.
Nunca me imaginei pensando a criminologia antes, muito menos, atuando
como defensora criminal.... Os caminhos são estranhos, não é?
Nunca antes de agora, imaginei que as garantias da Parte Geral do Código
Penal e do CPP tivessem tanta importância na defesa de direitos
Constitucionais... Mas percebi, que em um Estado ditatorial, que se diz legitimado pela
Lei, é com base nessa lei que terei que me armar na defesa da cidadania!
Um Estado que persegue professores e os espanca, que se utiliza da
formação de quadrilha para prender cidadãos que se manifestam em defesa
das Instituições que estão sendo corrompidas e roubadas por seus
representantes públicos. Em um país onde os corruptos fazem as leis, o
advogado que queira defender a cidadania deve saber DIREITO PENAL! Feliz aniversário meu filho, feliz aniversário Constituição Federal. Não
era esse o futuro que sonhava para ti quando te trouxe ao mundo, quando
te vi nascer.
Caros alunos, vocês vivem me ouvindo falar em Luis Warat. Não terão, infelizmente, a oportunidade de conhecer essa figura maravilhosa do direito, mas pelo menos, um pouco dele posso mostrar.
Assistam o vídeo e entendam a profundidade da visão desse grande pensador e eterno amigo.
Cerca de 250 alunos da UnB (Universidade de Brasília) fizeram protesto nesta quarta-feira (11) em apoio à estudante Geisy Arruda. Às 14h, cerca de 250 estudantes foram à reitoria da instituição nus ou com pouca roupa, em protesto à atitude considerada por eles como "machista" dos estudantes da Uniban de São Bernardo do Campo. Os universitários também reivindicam políticas institucionais para a segurança da mulher na universidade.
Também existe um manifesto sobre o assunto na page do Prof. Alexandre da Rosa que vale a pena ser conferido: http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2009/11/uniban-e-violencia.html#links
Também ver o blog: http://autonomiadasmulheres.blogspot.com/
Por um novo paradigma ao ensino do Direito*. O ensino jurídico é um dos temas que abrasa o pensamento de todos aqueles que, vinculados ou não ao mundo jurídico, pensam uma democracia para o Brasil eis que a perpetuação do autoritarismo e das condições que mantém as desigualdades sociais e impedem a ampliação da cidadania no país, está ligado, de forma evidente, à contribuição de nossas faculdades e cursos de direito retrógrados e estagnados. Conforme argumenta Horácio W. Rodrigues(1), o ensino jurídico brasileiro, desde sua origem foi marcado como “um ensino voltado à formação de uma ideologia e sustentação política e à formação de técnicos para ocuparem a burocracia estatal”,características que continuam ainda presentes, hoje, sob novas formas e matizes.
As preocupações com o ensino jurídico no país, infelizmente, têm sido focadas apenas no âmbito da “metodologia didático-pedagógica” mais adequada ao ensino do Direito e no curriculum mais apropriado dos cursos, centrando-se na discussão sobre a bipolaridade da teoria versus prática. Esquece-se que o ensino jurídico não é apenas uma fonte material do Direito, uma vez que forma o senso comum sobre o qual se estrutura a prática dos egressos dos cursos jurídicos, bem como é fonte política, pois os saberes por ele transmitidos reproduzem a sociedade autoritária e o estado burocrático existente no país, servindo como força estagnadora e como empecilho à construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e pluralista. Conforme Roberto Aguiar(2), “o direito é a ideologia que sanciona, é a linguagem normativa que instrumentaliza a ideologia do legislador ou a amolda às pressões contrárias, a fim de que sobreviva”.
O ingresso do aluno na vida acadêmica é um momento de profundas mudanças em seu universo de conhecimento, um convite a novas descobertas, a desvendar um mundo desconhecido, porém fascinante que, aos poucos, vai lhe sendo revelado por seus mestres a medida em que estes abordam as características intrínsecas e extrínsecas da profissão escolhida. Conforme muito bem refere Michel Miaille(3), o professor terá a tarefa de guia nesta jornada rumo ao saber, fazendo com que o aluno descubra a ciência jurídica, penetrando neste universo novo e desconhecido.
Não se pode negar o fato de que nossa atualidade caracteriza-se pelo pensamento apresentado de forma fragmentada, provisória e em constante reformulação conforme os interesses dos que tem o poder de comando de uma sociedade onde o cidadão confunde-se mais e mais com um consumidor. Neste contexto, também a introdução ao saber universitário se dá por vários caminhos condicionados a valores e ideologias. Não há, portanto, neutralidade nesta jornada, pois tanto o estudante quanto o professor situam-se na academia a partir de convicções e valores que lhes foram postos no decorrer de sua formação, pelas estruturas que influenciam a construção de sua personalidade, tais como família, escola, igreja, meios de comunicação, etc. A atividade de ensino nunca será totalmente isenta de condicionamentos ideológicos.
Existem, assim, várias introduções possíveis ao aluno neste “novo mundo” ao qual ele adentra, cada qual possui racionalidade e interesses próprios, por vezes setorizados. Ao professor cabe a responsabilidade (das mais difíceis, uma vez que as estruturas condicionam ao aluno a não pensar) de abrir-lhe as portas do conhecimento e orientar-lhe em sua caminhada acadêmica, com seriedade e competência, instigando ao aluno a reencontrar a “paixão” pelo saber. Conforme Maria Cândida de Moraes(4),
“(...) a pedagogia atual não poderá se contentar em ser mera transmissora de conteúdos e informações, embora como insumo a informação seja fundamental. Ela deverá ir muito além, pois a emancipação, pessoal e socialmente, requer muito mais do que a mera transmissão e a mera reprodução da informação; ela exige a capacidade de construir e reconstruir conhecimentos, ou seja, o desenvolvimento da autonomia”.
O Direito é parte integrante das ciências sociais e como tal é um conhecimento eminentemente crítico(5). Ao pedagogo-jurídico importa fazer aparecer ao aluno o invisível no processo do conhecimento, indo além das aparências. Conforme Darcísio Corrêa(6), não se pode captar a complexidade da realidade social pela mera descrição do que é visível, pela simples experiência sensível. O professor de direito deve se conscientizar de seu compromisso social, de sua atuação política na sociedade pois é um microlegislador que poderá reproduzir o sistema de desigualdades sociais em que se encontra inserido ou semear novas idéias e utopias reforçando a luta pela mudança e pela concretização da democracia.
Conforme muito bem refere Horácio W. Rodrigues(7), o problema do ensino jurídico não se reduz a questões curriculares e didático-pedagógicas. Currículo e metodologia do ensino são meras conseqüências de uma estrutura de pensamento e de uma prática já estabelecidas; são conseqüência do senso comum dos juristas. Há que se ter consciência que o professor de direito é apenas um estudante mais experiente, que já galgou alguns passos em direção ao saber, o qual apenas orienta o aluno na sua tarefa de acumulo do conhecimento, com os meios e informações de que dispõe. Logo, o jurista não consegue ensinar aquilo que ainda não assimilou. Ressalte-se o fato de que a maioria dos professores de direito não tem qualquer formação na área educacional, sendo, em sua grande parte, advogados, promotores, juízes, delegados, ou seja, graduados que exercem o magistério ou como forma de algum status que os ajudará nas suas reais carreiras, ou como forma de complementação da renda. Como conseqüência disso, não vivem a realidade acadêmica e não se dedicam à pesquisa, restringindo-se a reproduzir em sala de aula as velhas lições de seu tempo de estudantes somadas à sua prática na atividade profissional que desenvolvem. Como agravante desta situação, os professores são divididos em disciplinas diversas, com conteúdo programático pré-definido de forma estanque, como se o direito não fosse um todo que se complementa, o que dificulta ainda mais a troca de idéias e o amadurecimento de novas posições.
Neste ponto, emerge uma questão delicada, a capacidade do professor, embora lecionando uma disciplina curricular específica, transmitir ao aluno um conhecimento interdisciplinar do direito. A questão do ensino interdisciplinar (tão em voga) tem de ser revista, não podendo figurar apenas como a introdução no currículo de uma série de disciplinas de outras áreas do conhecimento que propiciem, cada uma delas, a sua visão isolada do fenômeno jurídico, de forma que acaba por trazer ao aluno uma série de visões estanques, sem contudo, propiciar-lhe uma compreensão de sua totalidade. Aliás, o que tem sido feito em termos de educação jurídica tem mais o caráter de reprodução de velhos conhecimentos que de um caráter multidisciplinar ou mesmo interdisciplinar.
A sociedade vive em um processo constante de movimento e o aluno tem de estar apto a acompanhar estas mudanças e alcançar à sociedade os meios de que ela necessita para concretizar-se justa. Neste sentido, a plena apreensão do direito enquanto objeto de reflexão exige mais que um saber técnico, pois requer um estudo profundo dos fatores históricos que o produziram bem como das implicações que joga sobre o futuro. Com isso, o conhecimento crítico-científico, ao invés de apenas descrever os acontecimentos sociais juridicamente regulados, insere-os na totalidade do passado e do futuro da sociedade que o produziu.
O pensamento crítico necessário ao egresso na atualidade é mais que o pensamento abstrato, é um pensamento dialético que parte da experiência de que o mundo é complexo: o real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela seja consciente ou inconsciente. Mais precisamente, o pensamento dialético ou crítico é aquele que compreende esta existência do contraditório, pois, conforme Miaille(8),
“(...) este, encara-o não só no seu estado atual, mas na totalidade de sua existência, quer dizer, tanto naquilo que o produziu como no seu futuro. Este pensamento pode pois, fazer aparecer o que a realidade presente me esconde atualmente e que, no entanto, é igualmente importante. A realidade é coisa diversa e muito mais do que está codificado (...) na linguagem dos fatos”.
Urge que nos debrucemos à investigar os problemas atuais do ensino jurídico e as alternativas possíveis para que o mesmo possa corroborar para a formação de um acadêmico que consiga compreender o direito em relação aos fatos que lhe permitiram a existência, bem como, em relação ao que projeta para o futuro, tornando-o solidário com os demais fenômenos da história social, bem como com as ciências que tentam explicar estes fenômenos. É necessário encontrar alternativas para que o pedagogo-jurídico consiga instigar o estudante a munir-se de informações (das mais variadas fontes de conhecimento) e estimulá-lo a cultivar valores ético-políticos oriundos de posicionamentos conscientes, embasados em um raciocínio lógico, mas também sensível, humanista, uma vez que, o perfil ideal do bacharel em direito aponta para um profissional bem informado, munido de uma formação voltada para o pleno exercício da cidadania. Apenas essa dupla dimensão permite a percepção da realidade além das aparências(9). Não existem, portanto, dogmas irrefutáveis nem verdades absolutas, também inexistem donos da verdade, sem preconceitos e estereótipos.
Neste ponto, me permito citar novamente as palavras do professor Darcísio Corrêa(10), pois comungo de cada uma delas:
“A busca de novas verdades pressupõe espíritos desarmados, pois a construção do saber implica constantes reformulações, que de forma alguma significa abdicar dos princípios e valores fundamentais que norteiam nossa jornada. O que conta, em última análise, é a vida, vivida na plenitude de nossas limitações. Cabe ao direito [e ao pedagogo-jurídico, me permito afirmar], enquanto regulador da conduta social propiciar as condições de possibilidade de sua efetiva concretização em termos de igualdade, dignidade e solidariedade humanas. Que as presentes reflexões sejam um marco a mais na sempre renovada tarefa de construção da cidadania num contexto planetário de globalização voltado para a solidariedade e para a reciprocidade ao invés da exclusão social e da descartabilidade do ser humano.
É nesta jornada rumo ao engajamento por um conhecimento jurídico resultante de uma proposta de alternativas para conseguirmos a um ensino de qualidade humanista que precisamos nos esforçar, traçando assim, novas perspectivas para a educação e construção da cidadania no Brasil. Afinal, sem as utopias não há transformação da realidade e sem possuirmos esperança de construirmos um mundo novo, não há razão para a vida. A mudança social, em nosso entender, começa pelos bancos acadêmicos.
Referências: (1) RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino Jurídico: Saber e Poder. São Paulo: Acadêmica. 1988, p. 09. (2) AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito Poder e Opressão. 2ª ed. São Paulo: Alfa-omega, 1984, p. 79. (3) MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito. Lisboa: Moraes Editores, 1994. p. 17. (4)MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. São Paulo: Papirus, 1997. p. 145/146. (5) CORREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico políticas. Ijuí: Unijuí, 1999. p. 15. Segundo o autor, o termo crítico ultrapassa seu significado habitual, objetivando: “por em questão o conjunto ou a globalidade do fenômeno jurídico dentro das relações sociais.” (6) CORREA. Ob. Cit. p. 16. (7) Ob. Cit. p. 107. (8) Ob. Cit. p. 22. Grifos meus. (9) CORREA, Ob. Cit. p. 18. (10) CORREA. Idem. p. 19.
* WOLLMANN, Andréa Madalena. Texto oriundo do projeto de pesquisa: Novos Olhares para o ensino Jurídico no Brasil.
Reminiscências e reflexão: direito em metarmofose.*
Lembro-me da minha entrada na Universidade e neste passeio pela vida se vão quatorze anos que não vi passar. Adentrei a Universidade no Curso de Direito, sedenta por mudança, sedenta por Justiça, com a vontade de mudar o mundo comum aos jovens idealistas que adentram todos os anos os bancos das faculdades de Direito neste país. A Unijuí era um lugar que nos propunha ser diferente, fazer a "diferença". Uma proposta de Universidade, de reunião em prol da busca do conhecimento. Eu, que nunca sonhara estar numa Universidade, ali estava, vinda de escola pública, de família pobre, depois de tantos afirmarem, por anos, que era impossível à "nós" aquele espaço de saber. Logo conhecia o professor de Filosofia do Direito que nos fazia a seguinte pergunta: Que é Direito, que é Justiça, que é Democracia? Lembro que me foi dado ler o livro de Roberto Lyra Filho (Que é Direito), onde ele tentava definí-lo como sendo: “...............” (o que ele é mesmo (?)). Inquietação, dificuldade de entender o que nos propunha o professor (a mesma inquietação que hoje vejo em meus alunos)... nossas bases foram rompidas e desde então nunca mais fui a mesma, tive de rever as teorias em mim enxertadas ao longo dos meus 21 anos de então. Passo seguinte, fui apresentada ao livro de Roberto Aguiar que parecia responder a pergunta sobre o que é Justiça e passei a estudá-lo, vendo como ele brilhantemente definia Justiça como sendo uma bailarina que ora dançava com os poderosos, ora com os miseráveis, num balé estranho cuja profundidade me escapava a percepção. Também tentei conceituar o que seria direito em sua obra#, e descobri que ele anda junto com o poder e a opressão, mas que ele poderia simbolizar um espaço de libertação. Aos poucos, me apresentaram Hobbes, Locke, Rosseau, Monstesquieu, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Kant, Kelsen, Bobbio e tantos outros... tantas estrelas agora abrilhantavam meu obscuro céu, sedenta de conhecimento, bebia da taça que me serviam com a gula de uma criança. Por fim, certo dia me chega às mãos um texto de Warat... um descortinar da realidade, um rever a linguagem, os símbolos, a vida... um descortinar de uma nova possibilidade de análise, hermenêutica. Warat foi paixão a primeira vista, ao primeiro texto. Mas o direito alternativo, em voga, também nos apaixonava. Assim, cruzei cinco anos na velocidade jamais imaginada por mim e quando percebi, me formei, alternativa, em meados de 2000. Após algumas leituras, me descobri garantista, e depois disso, me surpreendi resgatada por Warat, mensurando a possibilidade de um movimento surrealista no direito. O direito, como até aqui pensando, foi incapaz de resolver velhas questões, e outras novas despontam buscando respostas. Através dessa pequena catarse, o que se vislumbra é a constante possibilidade de mudança: a metarmofose. Assim, também o direito precisa movimentar-se. Ideal do direito é que seja emancipatório e não mais, legitimador de uma ordem jurídica. Eis a perspectiva Waraniana. Passamos muito tempo discutindo com duas dimensões tradicionais de direito – jusnaturalismo e juspositivismo que a partir da Segunda Guerra mundial entraram em crise, ante aos efeitos dos massacres de então. Em termos de refinamento teórico essa crise se apresenta nos anos 70, pelas tentativas de explicar o mundo do ser pelo mundo do dever ser. Ao mesmo tempo reaparecia o ante-positivismo resgatando a pricipiologia e os valores contidos nas regras. As antinomias precisavam ser resolvidas e usamos critérios de ordem pratico-tecnologicas para tanto. Quando apareciam dilemas onde valores fundamentais apareciam em conflito e precisavam organizar a dogmática constitucional contemporânea – neo-constitucionalismo (as normas só dizem o que alguns leitores dizem que as normas dizem). Arbítrio de decisão não é arbitrariedade. Surgem as discussões hermeneutico-consitucionais. O verdadeiro fundamento da norma surge das expressões sociais, no diz Warat. As antigas discussões de pronto estão ultrapassadas pela história. Nos últimos 20 anos no mundo todo, demosntramos a carência dessas respostas as questões que se apresentam. A velocidade da globalização deságua também na globalização da responsablidade, devido a velocidade das informações. Na visão Waratiana somos responsáveis pelo mundo, pela humanidade. Pela facilidade de transporte, a migração aumenta e os valores circulam com maior velocidade no mundo, estas pessoas são portadores de valores subjetivos próprios de suas origens que aumentam a diversidade de alteridade no mundo. Como fica a questão da igualdade, se somos diversos. Estamos dispostos a defender a igualdade quando a igualdade corresponde o direito a diferença? A realidade nos confronta com inúmeros processos contraditórios, (global, local, diversidade e homegeneidade... etc) e constantes crises das representações politicas como bem diz Warat. O social não é natural, a realidade não é materialidade certa, é sentido, símbolo (significação agregada de sentido), artefato construido pelo homem, historicamente e de forma intersubjetiva, carregadas de contextualidade, de hegemonia. Precisamos construir uma nova teoria do imaginário. Para tanto, necessário conjugarmos uma ação descrita na frase repetida pelo Teatro Mágico: "Os opostos se distraem, os dispostos, se atraem". Sejamos nós, atraidos por uma proposta construtiva de uma nova realidade.
* Wollmann, Andréa Wollmann.
"Sintaxe À Vontade O Teatro Mágico Composição: Fernando Anitelli
Sem horas e sem dores Respeitável público pagão a partir de sempre toda cura pertence a nós toda resposta e dúvida todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser todo verbo é livre para ser direto e indireto nenhum predicado será prejudicado nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase e ponto final! afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas e estar entre vírgulas pode ser aposto e eu aposto o oposto que vou cativar a todos sendo apenas um sujeito simples um sujeito e sua oração sua pressa e sua verdade,sua fé que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não que enxerguemos o fato de termos acessórios para nossa oração separados ou adjuntos, nominais ou não façamos parte do contexto da crônica e de todas as capas de edição especial sejamos também o anúncio da contra-capa mas ser a capa e ser contra-capa é a beleza da contradição é negar a si mesmo e negar a si mesmo pode ser também encontrar-se com Deus com o teu Deus Sem horas e sem dores Que nesse encontro que acontece agora cada um possa se encontrar no outro até porque...
tem horas que a gente se pergunta... por que é que não se junta tudo numa coisa só?"
Este Desembargador é um dos responsáveis pela minha (de)formação acadêmica. Digamos que ele auxiliou neste processo de pensar, repensar e aplicar do Direito com uma visão mais humanista,e porque não, alternativa. Seus diálogos sobre Justiça acompanham a minha vida acadêmica e docente. Já pude agradecê-lo pessoalmente por esta referência, ocasião em que conheci a pessoa Amilton, despida da Toga, mas jamais de suas convicções e seu brilhantismo.
Hoje,embora distante, posso chamá-lo amigo e como humilde discípula, depois de tanto repassar o texto a seguir aos meus alunos retiro-o do armário empoeirado do meu HD e o posto neste blog à disposição daqueles apaixonados pela Justiça, como eu, que aqui um dia cheguem.
Tenho plena convicção que a luta pelo direito não possui neutralidade, mesmo quando nos colocamos como neutros, assumimos uma posição: a de cima do muro, a nossa, ou a do poder instituído. Prefiro o lado da Justiça.
Deixo o texto na íntegra para vocês. "LEI, PARA QUE(M)?
Amílton Bueno de Carvalho, Desembargador no Rio Grande do Sul
SUMÁRIO: I. Introdução; II. Crise da Legalidade – sua possível superação: os princípios; II. (a) Mas o que são princípios? II. (b) E suas características? II. (c) De onde vêm? II. (d) E sua aplicação? III. Mas e a lei, então, para que(m) serve? IV. E a lei penal?h
INTRODUÇÃO
O presente texto foi instigado pelo precioso amigo James Tubenchlak e vai em homenagem a ele: sua contribuição para o avanço da visão crítica no direito brasileiro marca este tempo em que se busca superar o olhar (e atuar) conservador (às vezes, reacionário) que alcança o senso comum dos operadores jurídicos.
A preocupação central de James – ao menos, a mim manifestada – está em que, principalmente no campo penal, a legalidade tem sido negada sistematicamente em prejuízo dos acusados. Mesmo entre os positivistas declarados há certa hipocrisia – consciente ou não – ao violar a base teórica que sustentam (Lyra Fº, aliás, já dizia: “a dominação é hipócrita” – “O que é Direito”, ed. Brasiliense, 4ª ed., 1984, p. 118).
Ao aceitar o desafio, procuro, neste trabalho, discutir (a) a crise da legalidade e sua possível superação, (b) a importância da lei e (c) quando se necessita da legalidade – em especial no campo penal.
Reitero o que tenho referido na quase totalidade dos meus textos: não tenho formação teórica agudizada, meu eventual saber emerge da atuação, por mais de duas décadas, como magistrado. Logo – e diferente não poderia deixar de ser –, sou marcado por este local de fala.
CRISE DA LEGALIDADE – SUA POSSÍVEL SUPERAÇÃO: OS PRINCÍPIOS
Cada vez mais fica claro entre os pensadores do direito que o princípio da legalidade está em profunda crise: a lei não consegue dar respostas suportáveis às situações que ela busca prever – seja pela inflação legislativa, pelo seu mau uso (e criação), pela impossibilidade lógica de alcançar a realidade que se altera brusca e incontrolavelmente, pela inconfiabilidade no legislador.
Germana de Oliveira Moraes (“Controle Jurisdicional da Administração Pública”, ed. Dialética, 1999) diz que:
“Como fruto da constante e renovada relação dialética entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ‘o direito por regras’ do Estado de Direito cedeu lugar, no constitucionalismo contemporâneo, ao ‘direito por princípios’” (p.19).
E, em momento seguinte, acompanha Paulo Bonavides;
“...com o declínio da primeira concepção do Estado de Direito, vinculado doutrinariamente ao princípio da legalidade, já superado pelo princípio da constitucionalidade, sob a égide do segundo Estado de Direito, no qual houve o deslocamento do centro da gravidade da ordem jurídica para o respeito aos direitos fundamentais” (p. 77).
O próprio Bonavides (“O Princípio Constitucional da Proporcionalidade e a Proteção dos Direitos Fundamentais” – Rev. da Fac. de Direito da UFMG, vol. 34, 1994, p. 281) vai um pouco mais longe ao entender que o “princípio da legalidade, com apogeu no direito positivo da Constituição de Weimar” está em “declínio, ou de todo ultrapassada”.
Elimar Szaniawski (“Considerações sobre o Princípio da Proporcionalidade” – Rev. dos Mestrandos em Dir. Econ. da UFBA, 1999, p. 512) segue na mesma linha:
“Na realidade, ocorre que o legislador moderno não atua mais dentro de um espaço de absoluta liberdade, tal qual agia ao tempo em que predominava o princípio da legalidade. Sob a égide do princípio da constitucionalidade, encontramos mecanismos que têm por fim limitar a liberdade do legislador, conquista do atual Estado de Direito”.
René David (“Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo”, p. 137) aponta que a “insuficiência da ordem legislativa”, “deixou bem nítido que o direito francês não se confundia com a lei”. Willis Santiago Guerra Filho (“Princípios da Isonomia e da Proporcionalidade como Garantias Fundamentais”, Ciência Jurídica, 1996, vol. 68, p. 297) entende que se está frente a “uma fase ‘pós-positivista’, com a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo”.
De logo – para além do vislumbrar da crise de legalidade rasteira, com a perda do caráter absoluto da lei – vê-se das citações anteriores que já se aponta para a forma de superar a legalidade insuficiente à previsão dos casos ou à busca de maior justiça aos resultados da aplicação: os princípios gerais do direito.
Em outro local, já me defini (“Direito Alternativo em Movimento”, ed. Luam, 4ª ed., p. 78):
“Outrossim, como a legalidade fria, muitas e muitas vezes, é entrave a decisões democráticas, busca-se ter o direito em construção, abandonando-se a visão de se o ter como dado. Ou seja, ousa-se criar ao invés de buscar apenas revelar o direito emergente do Estado.
“Então o limite passou a ser outro, ultrapassando a legalidade estreita, para alcançar os princípios gerais do direito do mundo civilizado (aqui se incluindo os direitos humanos).
“E estes princípios são tidos como históricos, construídos pela sociedade civil na sua caminhada em busca da utópica vida em abundância para todos. Estes princípios servem de norte interpretativo de todo o fenômeno jurídico e dão conteúdo racional ao ato decisório”.
II - (a) Mas o que são princípios?
Parece-me que a definição de Dworkin alcança bem o fenômeno: “uma norma que é mister observar, não porque torna possível ou assegura uma situação econômica, política ou social julgada conveniente, mas por ser um imperativo de justiça, de honestidade ou de alguma outra dimensão moral” (Francisco Balon Aguirre, “Sistema Jurídico Aguaruna e Positivismo”, in Qual Direito? Ed. Jajup, p. 19/20).
Todavia, vários são os olhares – em busca de conceituação – dos princípios:
Jesús Leguina Villa – cit. por Germana, op. cit., p. 19 – entende que eles “expressam e articulam os valores centrais, as representações jurídicas gerais e as opções básicas de cada sistema jurídico”. E Germana (p. 20) cita também Bonavides, são “a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder, e são compreendidos, equiparados e até confundidos com os valores”.
Elimar, no texto antes referido (p. 506/507), após citar Bandeira de Mello – que o tem como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele” – refere que os autores designaram-o como “as ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas”.
San Tiago Dantas (citado por Leoni Lopes de Oliveira, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Material”, Doutrina 2000, publicação Instituto de Direito, p. 369) entende que são “como uma síntese das normas dentro de certos limites históricos”.
Eros Roberto Grau (“Licitação sem Objeto”, Rev. Trim. de Dir. Público, v. 10, p. 95), criativo como sempre, entende que se constituem em direito pressuposto: a base do direito posto.
Vê-se, pois, que princípios são os valores centrais do espaço jurídico (tido como “construção histórica” do homem em busca da dignidade cada vez mais humana, logo, embora absolutos em determinado momento, não são “eternos”, nem “dados”).
São o pano de fundo a orientar a criação das normas e a própria exegese. Deles, como diz Elimar, são irradiadas e imantadas as normas: de onde partem e onde devem chegar, uma espécie de efeito “bumerangue”.
Os princípios são o momento mais importante (diria, até sublime) de todo o ordenamento porque “imperativo de justiça”, ou seja, fim de todo o direito – positivado ou não.
II - (b) E suas características?
Willis – op. cit. – assim esclarece:
distingue-se das regras porque prescreve um valor, enquanto estas descrevem “uma hipótese fática e a previsão da conseqüência jurídica”;
apresentam, ao contrário das regras, maior abstração; não se reportam “a nenhuma espécie de situação fática” (a ordem jurídica é concebida por normas com menor ou maior abstração, desde a mais concreta – sentença – até se chegar aos princípios);
embora as regras possam entrar em rota de colisão, ao ponto de se chocarem, com os princípios tudo é diferente: “não entram em choque, são compatíveis uns com os outros”, acomodam-se.
No meu entender, quando se dá choque entre norma e princípio, vigora este porque é o informador daquela (aliás, neste momento estamos autorizados a negar não só a validade, mas até a vigência – no viés ferrajoliano – das leis).
Hart, no “Postscriptum” em debate com Dworkin (“La Decisión Judicial” – el debate Hart-Dworkin”, Siglo del Hombre Editora, estudo de César Rodriguez, 1997, Bogotá, p. 119) tem quase que idêntico entendimento:
“El primero es una cuéstion de grado: los principios, en relación a las reglas, son generales o no especificos, en el sentido en que a menudo lo que se consideraria como un número determinado de reglas puede ser mostrado como ejemplificación o instancia de un principio único. El segundo rasgo seria que los principios, por cuanto se referien más o menos explicitamente a algún propósito, meta, facultad o valor, son considerados, desde cierto punto de vista, como algo que resulta deseable preservar o ser objeto de adhesión y que, por ende, no sólo suministran una explicación o racionalidad de las reglas que los ejemplifican, sino que al menos contribuyen a sua justificación”.
O próprio César (loc. cit., p. 50/52), forte em Dworkin, diz que as regras, ao contrário dos princípios, “operan dentro de un esquema de todo o nada”, por isso, prossegue, as “reglas son conclusivas y los principios son no-conclusivos”.
II - (c) De onde vêm?
A maioria dos doutrinadores entende que os princípios têm como “ambiência natural o texto constitucional” (Willis, loc. cit., p. 299).
Ou seja, a Constituição – como síntese do ordenamento jurídico – carregaria, implícita ou explicitamente, a principiologia (o pano de fundo, a reserva ético-valorativa, o centro irradiador-imantador) que orienta o sistema.
Assim, necessária a positivação – ao menos implícita – dos princípios.
Sigo linha diversa. Tenho que os princípios – enquanto reserva ética, repito – não necessitam, à sua aplicação/existência, estar positivados – na Constituição ou em outra disposição legal. Estão acima e para além de qualquer positivação.
Os princípios – desde meu ponto de vista – são – como conquistas da civilização – inclusive orientação e limite ao próprio Poder Constituinte: é um núcleo duro da cidadania que só pode ser relegado (repito, historicamente considerado) com a atuação da própria humanidade ao destruir princípios antigos e na construção de novos (o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é “pressuposto” – para seguir Eros –, neste momento histórico, da condição humana).
Eis o que diz Dworkin em sua crítica a Hart (já citada “La Decisión Judicial, p. 55): “... lá consagración positiva de los principios no es un requisito para su aplicación”, ... “la validez de estos principios radica justamente en sua aceptación en la práctica juridica”.
Eduardo Garcia de Enterria (“Reflexiones sobre la Ley y los Principios Generales del Derecho”, ed. Cuadernos Civitas, 1984, Madrid, p. 52/53), após “recordar que el Derecho excede necessariamente de la ley”, afirma que existem “principios supralegales”.
Bonavides (loc. cit., p. 283), ao escrever sobre a proporcionalidade, diz ser ele “princípio não-escrito, cuja observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto pertence à natureza e essência mesmo do Estado de Direito”. Diria mais: a proporcionalidade é regra além do Estado de Direito: é norma de vida – adequação entre meio e fim!
Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz (“A Concessão de Medida Liminar em Processo Cautelar e o Princípio Constitucional da Proporcionalidade”, Rev. Forense, 1992, vol. 318, p. 105) cita Canotilho: “os princípios beneficiam-se de uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito”.
Leoni (loc. cit.) traz a experiência alemã onde princípio (no caso que Leoni debate, o da “proporcionalidade”) “é reconhecido como norma constitucional não escrita” (p. 364), e afirma que eles “não precisam necessariamente estar previstos em lei”. Cita, na mesma linha, Nelson Nery Júnior: “não necessitam estar previstos expressamente em normas legais, para que se lhe empreste validade e eficácia” (p. 369).
Retomo René David (ob. cit., p. 138) que refere a decisões da Corte Constitucional alemã no sentido de que: (a) o direito constitucional não se limita à Constituição, mas alcança “certos princípios gerais que o legislador não concretiza numa regra positiva”; (b) existe “um direito suprapositivo que vincula o próprio legislador constituinte”; e (c) a idéia que o constituinte pode tudo fazer “significaria um retorno a um positivismo ultrapassado” (p. 138).
Neste quadro – núcleo do sistema, logo “indiscutíveis e indisponíveis, como patrimônio da civilização” (Winfried Hassemer, “Segurança Pública no Estado de Direito’, Ver. Ajuris, 62, p. 162), com valor além do ápice piramidal kelseniano – fica patente sua importância como instrumental à superação da legalidade rasteira.
Para Bonavides (ao debater a proporcionalidade), com ele “os juizes corrigem o defeito da lei”, bem como superam as “insuficiências legislativas” (p. 278); cria “ascendência do juiz-executor da justiça material – sobre o legislador”, mesmo porque o legislador “deixou de mover-se com a inteira liberdade do passado” e o juiz “atua por um certo prisma em espaço mais livre” (p. 282).
O constitucionalista de vanguarda Luis Roberto Barroso (“Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Constitucional”, Rev. Forense, p. 336/70) cita San Tiago Dantas: a agressão aos princípios “produz sensação íntima do arbitrário, traduzida na idéia de lei injusta”.
E Dworkin fala que eles, embora funcionem diferente das regras “son igualmente obligatorios, en tanto deben ser temidos en cuenta por cualquier juez o intérprete en los casos en que son pertinentes” (“La Decisión Judicial, p. 36).
Um exemplo que quase todos os estudiosos do tema citam – aliás, de todo esclarecedor – é decisão do S.T.J., de 1994, que entendeu que agride ao princípio da “razoabilidade e caracteriza desvio ético jurídico a norma que concede a servidor inativo a gratificação de férias atribuída aos servidores em atividade” (Leoni, loc. Cit., p. 376): a superação do irracional deu-se via princípio não-positivado!
II - (d) E sua aplicação?
Ainda é restrita. Muito menor do que o esperado em busca de dar racionalidade (leia-se, justiça) à ordem (im)positiva.
É que – ao meu sentir – nós, operadores jurídicos, enquanto regra, somos positivistas-legalistas. Trabalhamos com a hipótese subsunçora da lei ao fato.
Parece-me que o alto grau de abstração, próprio dos princípios, gera pânico: carrega falsa idéia de insegurança. É que nosso senso comum é forjado à aplicação da norma visível que exige mínimo – às vezes nenhum – esforço intelectual.
Não somos “programados” para abstração – exige criação e não mera repetição do saber manualesco. Ao abstrair, torna-se impossível encontrar modelo já fabricado: somos forçados ao novo.
Não logramos, pois, descobrir o invisível que está por detrás da realidade aparente, como ensina Michel Mialle (“Uma Introdução Crítica ao Direito”, ed. Moraes, Lisboa, 1ª ed., p. 18), e tudo fica – cansativamente – como está: a nossa empolada retórica é mesmice espetacular!
MAS E A LEI, ENTÃO, PARA QUE(M) SERVE?
Se é certo que o princípio da legalidade está em declínio e se busca sua superação via princípios gerais de direito, pertinente questionar: qual, então, sua utilidade?
Em verdade, o que se tem dito – e procurado comprovar – é que a lei perdeu o cunho de dogma, verdade absoluta, inquestionável, deixou de ser a fonte única do direito e com importância inferior aos princípios: categoria superior.
Todavia, a lei – escrita ou não – é indispensável à vida social (o homem só é homem porque existe o outro). Não se vislumbra possibilidade de respeito a si e ao outro sem lei.
A lei – desde meu ponto de vista – diz necessariamente com limite. É, sempre e sempre (eticamente considerada) sua própria razão de ser: limite ao poder desmesurado.
Em outras palavras: a lei é limite à dominação do mais forte.
Num primeiro momento, ela é limite a mim mesmo, ou seja, é limite interno ao próprio indivíduo.
Há precioso trabalho de Carlos Affonso Pereira de Souza e Patrícia Regina Pinheiro Sampaio (“O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional”) publicado na Revista Forense, vol. 350, p. 29 e seguintes, onde a partir de Freud “tudo se explica”:
“...entende o pai da psicanálise atuar a lei como forma de repressão ao poder desmesurado, ou seja, oferecendo ao indivíduo na esfera do inconsciente a proteção de uma figura paterna. Considerando a lei como um pai substituto...”
E o “pai”, diz o psicanalista Mario Corso (Caderno de Cultura, jornal Zero Hora, 11.11.2000, p. 7), é aquele que tem a “função de separar mãe e bebê” (“mãe” enquanto “lugar de origem”). Ao lograr a “separação”, o bebê se encontra enquanto individualidade e reconhece a existência do outro, enquanto outro.
Pois bem. Na fantasia, tenho poder desmesurado, espetacular, destruidor, logo necessito um limite a este poder, o qual (limite) me é dado pela “figura paterna”: esta é a lei.
Aliás, sabemos todos que a delinqüência (aqui no sentido amplo, não no mero positivado) diz com a ausência de limite: a destruição do outro ou o outro como sem significado – extensão do um. E a perda do limite internalizado faz com que se o busque no pai-Estado-prisão.
Num segundo momento, a lei diz com limite ao outro frente a mim. É a proteção que o “eu” tem que o outro não me “destruirá”. É a proteção que o pai-lei me assegura: “vou ser agredido? O ‘pai’ vai me socorrer”.
O poder desmesurado do outro é contido: se ele, por si-mesmo, não me respeita, a lei deverá “impor” a condição de civilidade.
Num terceiro momento, a lei diz com limite ao soberano: a contenção do poder do próprio Leviatã. Em outras palavras, o poder do pai-Estado deve ser limitado. Ele, pai-Estado, não tem direito ao poder sem limite: o legislador não pode fazer tudo o que quer – aliás, é o que se tratou anteriormente ao se buscar conter a legalidade abusiva através dos princípios gerais do direito.
Assim, como limite ao poder desmesurado – meu, do outro, do Estado – a lei é absolutamente indispensável como condição de humanidade. Talvez por isso Ferrajoli entenda que sequer “ninguna mayoria, ni siquiera por unanimidad, puede legitimamente decidir la violación de un derecho social” (“Derechos y Garantias”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 24).
Em definitivo: a “lei” deve “me proteger” mesmo contra a unanimidade!
É bem verdade que a função da lei, eticamente considerada, desde muito tem sido desvirtuada: muitas vezes, deixa de ser limite ao poder desmesurado, para ela mesma ser fonte de opressão – de limite à dominação se transforma em instrumento dominador.
Enterria (loc. cit., p. 27/28) bem esclarece:
“La sociedad actual no las comparte ya, y, mucho más, ocurre todavia que, como un resultado de la experiencia histórica inmediata, há comenzado a ver en la ley algo en si mismo neutro, que no sólo no incluye en su seno necessariamente la justicia y la libertad, sino que com la misma naturalidad puede convertirse en la más fuerte e formidable “amenaza para la libertad”, incluso en una “forma de organización de lo antijuridico”, o hasta en un instrumento para “la perversión del orden juridico”.
Alberto Binder (“Entre la Democracia y la Exclusión: la lucha por la legalidad en una sociedad desigual”, palestra no “II Taller sobre la Red Latinoamericana de Magistrados y Funcionarios Judiciales por la Democratización de la Justicia) vai mais longe:
“No podemos pretender que los distintos sectores sociales se entusiasmen y utilizen la legalidade si ella es sinónimo de trampa, laberinto, falsedad, engaño, sutileza fútil, tibieza, farsa y privilegio encubierto”.
Sobre a lei enquanto instrumento de dominação, e especial na sociedade capitalista, ouso remeter o leitor a texto que produzi “A Lei. O Juiz. O Justo”, publicado no meu “Magistratura e Direito Alternativo”, ed. Luam, 5ª ed., p. 24/48.
A rebeldia primeira contra a lei que perde sua finalidade – melhor dito, que tem a finalidade desvirtuada – vem dos jusnaturalistas.
Em texto publicado na Revista de Investigaciones Juridicas, nº 24, p. 413/426, ano 2000, de Aguascalientes, “Democracia y Ley Natural desde el iusnaturalismo católico de Suárez”, o precioso jusfilósofo mexicano Jesús Antonio de la Torre Rangel, recolhe de Francisco Suárez a lição seguinte: “una ley injusta no es ley”...”hablando en sentido proprio y absoluto, solamente puede llamarse ley, la que es medida de la rectitud sin más, y, consiquientemente, sólo la que es regla recta y honesta”.
E deve ser recusada obediência: “1º. Si se trata de una ley injusta; 2º. Si aun no siendo injusta, es demasiado gravosa; y 3º. Si de hecho la mayor parte del pueblo no observa la ley”.
Mas, então, para que(m) serve a lei?
A lei é limite ao poder desmesurado – leia-se, limite à dominação. Então, a lei – eticamente considerada – é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação.
Sua importância é, pois, espetacular: combate à opressão!
E, por conseqüência, o juiz enquanto “aplicador” deste tipo de legalidade é também protetiva ao débil.
Em outro texto, Jesús Antonio (“Critérios filosóficos-jurídicos para Administrar Justicia de Alonso de la Vera Cruz”, Caleidoscópio, Univ. Autonoma de Aguascalientes, México, nº 1, p. 126) cita Porfírio Miranda:
“cuando en la historia se ideó la función de un juez.... fue exclusivamente para ayudar a quienes por ser débiles no pueden defenderse; los otros no lo necessitam”.
Aliás, é até disposição da Bíblia:
“Falem a favor daqueles que não podem se defender. Proteja os direitos de todos os desamparados. Fale por eles e seja um juiz justo. Proteja o direito dos pobres e necessitados” (Pr. 31.8.9).
A crítica – sempre agudizada – de Ferrajoli também se faz presente (quanto ao papel do juiz):
“...puesto que en ningún sistema el juez es una máquina automática, concebirlo como tal significa hacer de el una máquina ciega, presa de la estupidez o, peor, de los interesses y los condicionamientos de poder más o menos ocultos y, en todo caso, favorecer su irresponsabilidad política y moral” (“Derecho y Razón, p. 175).
E em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El contexto extraprocesal”, p. 46):
“Sobre todo la conciencia profesional del juez como tutor y garante, frente a los poderes tanto públicos como privados, de los derechos fundamentales de los ciudadanos”.
No que refere a lei enquanto fenômeno de proteção ao mais fraco, o próprio Ferrajoli em três momentos defende a tese:
“O Estado Constitucional de Direito Hoje: o Modelo e a sua Discrepância com a Realidade”, palestra apresentada em 1994, seminário dos Juízes para Democracia espanhola: “... na consciência de que os direitos fundamentais são sempre leis do mais fraco contra a lei do mais forte...”
Seu livro mais específico: “Derecho Y Garantías – La Ley del más Débil”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 54: “Los derechos fundamentales se afirman siempre como leyes del más débil en alternativa a la ley del más fuerte que regia y regiría en sua ausencia”.
no clássico “Derecho y Razón”, p. 335, neste momento na vertente do direito penal que se analisará no capítulo seguinte.
Ressalto, ao final, que lei do mais débil, lei do mais fraco, pode ser sintetizada como lei do pobre porque “el pobre, como expresión de lo humano, por la violación sistemática de su esfera vital dará siempre la pauta de esta búsqueda histórica de la vigencia real de los derechos humanos, la justicia y el bien común” (David Sánchez Rubio, “Filosofia, Derecho y Liberación en América Latina, Desclér, Bilbao, 1999, p. 183).
Mas pobre enquanto categoria sociológica. É que “la categoria pobre es amplia y abarca todo tipo de pobreza, desde la miseria del hombre hasta la falta de justicia y derechos, la desigualdad, la opresión, la falta de libertad, el compromiso de la fe por la degradación del hombre” (José de Souza Martins, citado por Jesús Antonio de la Torre Rangel, “Sociologia Juridica y Uso Alternativo del Derecho”, ed. Inst. Cultural de Aguascalientes, 1997, México, p. 37).
E A LEI PENAL?
Se a lei é sempre a lei do mais fraco, o arsenal interpretativo do direito penal tem que resolver a primeira questão básica: quem é, aqui, o débil (a partir de cuja “totalidade” olhar-se-á o fenômeno penal, ou seja, desde onde serão apreciadas as normas)?
Salo de Carvalho (“Descodificação Penal e Reserva do Código, publicação ITEC) bem esclarece: “... o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”.
Ferrajoli, vez mais, ensina:
“Es más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en el delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios com el”
...
“Bajo ambos aspectos la ley penal se justifica en tanto que ley del más débil, orientada a la tutela de sus derechos contra la violencia arbitraria del más fuerte” (“Derecho y Razón”, p. 335).
Em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El Contexto extraprocesal”) ele é mais incisivo:
“En la tradición liberal-democrática, el derecho y el proceso penal son instrumentos o condiciones de “democracia” sólo en la medida en que sirvam para minimizar la violencia punitiva del Estado, y constituyan por tanto – antes que un conjunto de preceptos destinados a los ciudadanos y de limitaciones impuestas a su libertas – un conjunto de preceptos destinados a los poderes públicos y de limitaciones impuestas a su potestad punitiva: en otras palabras, un conjunto de garantias fundamentales del ciudadano frente al arbítrio y el abuso de la fuerza por parte del Estado”.
Na mesma linha, ou seja, o penal enquanto garantia do cidadão-réu contra o perseguidor, veja-se o brilhante livro de Adauto Suannes, “Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Legal”, RT, 1999, p. 128/154.
Supera-se, assim, a questão básica: o débil (ou o pobre, enquanto categoria sociológica) no direito penal é o acusado – deve ser protegido, pois (exclui-se a ótica oriunda da “lei e da ordem” que o vê como instrumento da vítima, ou dos “homens bons”, na busca desesperada da punição).
Como, então, olhar a lei penal desde o ponto de vista do mais fraco?
Em dúplice diretiva:
na direção punitiva/perseguidora, a interpretação – aliás, já o disse em outro local (“Aplicação da Pena e Garantismo”, em parceria com Salo de Carvalho, ed. Lumen Juris, 2001, p. 124) – deve ter força centrípeta: a imantação é para o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível ao acusado, diria Ferrajoli).
Neste momento, a lei – garantia espetacular ao cidadão, tanto que o penal segue o princípio da legalidade – protege o cidadão-réu.
Assim, tudo vai em direção ao “núcleo duro” (diria Hart, “La Decisión Judicial”, p. 33) do tipo. É que as normas penais – agora diria Dworkin (“La Decisión Judicial”, p. 36) – “son reglas precisas”.
Eis o momento precioso da lei: em momento algum ela pode ser ultrapassada em prejuízo do débil. Aqui, aplicar a lei é como diria David Sánchez Rubio (loc. cit., p. 242) “una actuación revolucionária”.
Importante – desde meu ponto de vista – se tenha claro a força centrípeta quando se persegue o cidadão (o “príncipe” no penal) frente a constante violação da legalidade (repito: aqui protetiva, logo deve ser obedecida) quando se olha a lei como instrumento de dominação.
Um exemplo tenho como esclarecedor: o artigo 157, § 2º, I, do Código Penal Brasileiro, majora a pena de um terço até a metade quando o agente, à violência ou à ameaça, faz “emprego de arma” (art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa... § 2º. A pena aumenta-se de um terço até a metade: I. – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma).
A interpretação na direção ao “núcleo duro”, com vistas a “reglas precisas”, ou seja, na proteção do débil – a “centrípeta” porque persegue o cidadão –, arma só pode ser instrumento destinado ao ataque, a fazer mal, a causar dano físico.
No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nega vigência a lei ao “alargar” a interpretação, agredindo, assim, a proteção ao cidadão, ao sumular o entendimento que, para fins de majoração, entende-se que revólver de brinquedo é arma.
O Terceiro Grupo Criminal do Rio Grande do Sul (E. I. 70 00/653 666), através de voto do precioso Des. Aramis Nassif, com argúcia, ataca o entendimento sumulado. O voto de Aramis vai transcrito:
“A arma de brinquedo não pode ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo e. STJ. É que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal exasperante através de decisão judicial. Contrário sensu vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...). Mas, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Por maioria, acolheram os embargos.”
“... Sr. Presidente. 2. Acolho os embargos no sentido de reconhecer prevalecente o voto vencido. E a razão é a obviedade conceitual, material, visual, palpável de que revólver de brinquedo é brinquedo e arma é arma.
Ou não?
Se não, certamente que vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...)
Não existe mais brinquedo.
Mas eu tinha certeza que aquilo que eu tinha era um brinquedo (eu só tinha cinco anos de idade e sabia disto!)
Ou será que meus pais dar-me-iam uma arma?
Será que era uma arma e eu não percebo? Mas não seria uma brutal irresponsabilidade?
Mas eles eram tão cuidadosos e, por isto, não acredito que eles deixariam eu brincar com uma arma...
Bem, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Aliás, meu pai não deixava eu tocar no revólver verdadeiro que mantinha distante de meu alcance. Porque era uma arma, dizia ele. Será que ele estava me enganando e o que ele guardava com tanto cuidado era um brinquedo?
Não acredito, por isto, que a jurisprudência brasileira tenha o poder mágico de transformar um brinquedo em arma.
Afinal, a norma (art. 157, I, CP) não fala em emprego de arma? Não achei no meu Código expressão ou termo como emprego de brinquedo que autorizasse tornar a sanção mais severa. Não achei...
Como ampliar conceitos para prejudicar o réu?
A arma de brinquedo não pode, pois, ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo Eg. STJ. É, como disse acima, que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal.
Mas é eficaz para caracterizar o roubo. É que a capacidade intimidatória subjuga a vítima, impedindo que possa defender o bem jurídico atacado pela ação criminosa. Estou convencido que, pelo efeito intimidatório produzido na pessoa atacada, o emprego do simulacro pode caracterizar a grave ameaça, esgotada no plano psicológico e, assim, erige em roubo a atividade delinqüencial.
Todavia, vejo distância inalcançável entre este efeito e a majorante do artigo 157, § 2º, inciso I, do Código Penal, mesmo que, com tal convencimento, esteja contrariando a Súmula 174 do Eg. Superior Tribunal de Justiça. Acontece que, se é certo que arma de brinquedo desloca o modelo típico para o roubo, pelo arrasador efeito sobre a vítima, não pode ser conceituada, materialmente, como arma.
O espírito das majorantes é impor ao condenado um plus na sanção para o efeito de atender os princípios da necessidade e suficiência da pena. Assim, se o agente perpetra delito em circunstâncias que inflige à vítima especial sofrimento, físico ou mental, merece que sua pena seja exasperada.
Mas estou convencido de que, se presente a grave ameaça, jamais esteve presente a arma. Significa dizer que, de certo modo, o agente corre maiores riscos e a perspectiva de frustração do ato criminoso é muito maior se empregar um brinquedo como arma ante eventual reação da vítima ou de terceiros. Ele é, assim, pessoa menos perigosa do que aquele que, empregando arma verdadeira, gera, além da coação à vítima, sério risco à sua integridade física e, por tal, não pode sofrer as mesmas conseqüências penalizadoras.
Será que estive enganado por cinqüenta anos e o STJ, através de uma Súmula, veio revogar minha ignorância? Com a devida vênia, fico com a verdade de meus pais, pois eles eram responsáveis, sensíveis, humanos, enfim... Não estavam presos a delírios provocados pela fúria punitiva irracional que inspirou a sumulação. E para eles brinquedo era brinquedo, arma era arma...
O voto é no sentido de acolher os embargos e fazer prevalecer o voto vencido.
É o voto.”
Penso nada mais necessário dizer.
No entanto, quando para beneficiar o débil no direito penal entendo que a interpretação deve ter força centrífuga: dirigida para fora, na direção libertária.
Neste momento, ao contrário do que se fez o S.T.J. – arma de brinquedo como arma – o olhar interpretativo deve ser extensivo. Aqui os princípios gerais do direito são – como se viu no capítulo anterior – o instrumento hábil para combater injustiças, perseguições inócuas, excesso legislativo.
Salo escreve (local citado):
“Importante notar, contudo, que a exclusão das fontes materiais em matéria penal (v.g. analogia, costumes, jurisprudência, doutrina e direito penal comparado) diz tão-somente ao processo de interpretação criminalizadora e/ou penalizadora. Tal proposição não esgota toda esfera penal ao pressuposto da legalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo as fontes materiais das possibilidades judiciais. Sua negação é restrita aos processos de inclusão, não aos de exclusão da pena ou do delito (v.g., causas supra-legais de exclusão de tipicidade, ilicitude e culpabilidade).
Aliás, Alberto Silva Franco bem apanhou o papel do juiz neste espetáculo (“O Compromisso do Juiz Criminal no Estado Democrático”, Justiça e Democracia, nº 3, p. 270/271):
“Juiz penal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do estado leviatânico”
...
“é em resumo, ser o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo. E seria melhor que nem fosse juiz, se fosse para não perceber e não cumprir essa missão”.
Então, lei para que(m)? Para proteção do pobre (enquanto categoria sociológica) frente ao poder desmesurado.
Que tormento é ser a vítima... Que tormento é ser o autor... Nos corredores da Justiça! Que é cega... Somos impotentes ante a decisão De um outro cidadão... Com todo o poder de decisão. Qual é a sensação de ter o destino do semelhante nas mãos? Que martírio deve ser perguntar-se: Fiz Justiça? E nos bastidores do processo Que é uma peça de tormento Onde monólogos de acusação e defesa se engalfinham Não há vencedores... Decide-se sobre as vidas humanas Que são meras peças do jogo do Poder... Partes e advogados, juízes e promotores, funcionários e oficiais.. Personagens a serviço da Justiça... Mas que justiça? O que é Justiça? O que é legalidade? O que é verdade? Provas e verdades... Falsas verdades... Alegações... Vícios, preguiça.... Descaso... Descomprometimento... Tormento... Humanidade... Ou seria desumano todo esse sofrimento? Ah! A tortura do processo... Onde o homem traz para si A responsabilidade pela decisão de destinos... Martírio... dor... sofrimento, esperança... E uma esperada Sentença Impondo a decisão Numa solenidade, insolene Onde se brinca de fazer Justiça! E as vidas? Ah... as vidas... Ficam suspensas a espera da decisão Dias, meses, anos... horas De desesperança, desespero e confusão... Enquanto aguardam do Deus homem... cidadão Limitado aos autos, Cego a vida... Com a balança vergada Pelas experiências que teve, Pelos valores que recebeu... E com a espada em suas mãos... Decide. Bravos!!!! Menos um processo!!! Ah... egoísmo atroz... Ausência de empatia... Ele tem de ser Neutro! Clama a Ju$Ti$$a ... cega... Outras vozes dizem: Deve ser Imparcial! Mas como decidir com imparcialidade? Como fazer Justiça de verdade? Num mundo tão desigual... Como proteger os mais fracos? Como equiparar os desiguais... na imparcialidade? Mas clamam os tambores do poder: Calma meu caro! Temos de manter a Razão acima da emoção!!!! E o injustiçado, clama: JUSTIÇA!!!!! Que Justiça? O que é a Justiça? Que tormento ser vítima... Que tormento ser autor... Que tormento ser réu... Que tormento ser juiz... Que tormento estar... Indefeso.... Nos corredores da Ju$ti$$a!!!!!!!