quarta-feira, 22 de julho de 2009

Segundo Ensaio


As possibilidades de resistência individual e coletiva durante a escravidão no Brasil.*

A análise da questão da escravidão no Brasil nos permite observar como em situações de extrema ausência de direitos os indivíduos e os grupos estabelecem formas de resistência e de construção identitária a partir de signos, códigos culturais, formas de ação e referencial religioso. Nesse sentido destacam-se as obras deautores como Mary Karash, Luiz Alberto Colceiro e Carlos de Araújo, bem como João José Reis, dentre outros.
Os autores demonstraram a situação de subumana a que foram submetidos os escravos na nossa história precedente, chegados de lugares os mais distintos, com matizes culturais diversas, expropriados por sua constituição mercadológica do reconhecimento enquanto ser humano. A forma como eram vendidos e mantidos na cidade, nos mercados ou levados ao interior do país acabava determinando seu futuro mais ou menos trágico. Os escravos da cidade acabavam tendo uma melhor condição de sobrevivência, embora distante daquilo que se poderia cogitar como algo bom.
Na sua obra Karasch discorda da posição de que os senhores eram bons com seus escravos como mencionava Gilberto Freire em sua obra Casa grande e Senzala. Ao contrário, Karash destaca com requintes descritivos a condição de subumanidade em que os escravos eram transportados, vendidos, mantidos, traficados, leiloados, mortos, sepultados, etc.
Segundo a autora, entre os escravos havia um reconhecimento e um estranhamento em razão da origem dos mesmos (crioulos, mestiços, ladinos, etc). Escravos e livres não se reconheciam, a ponto de negros livres adquirissem escravos para si. As identidades eram fragmentadas tanto quanto as origens dos negros que aqui se encontravam, em um primeiro momento, o que dificultava a resistência coletiva.

No que tange a resistência individual, os autores ressaltam desde os pactos de obediência entre escravo e senhor com esperança da troca de sua mansuetude pela possibilidade futura de compra de alforria, até as práticas violentas como o suicídio e o assassinato. Sendo o escravo uma mercadoria cara, era imperioso que este não estivesse deprimido ou doente para que fosse uma boa mercadoria de venda, por esta razão as ferramentas dos mercadores eram a dança, os ritos, o tabaco, etc.
A construção de uma resistência coletiva acabou possível através da construção de laços sociais de solidariedade entre os escravos que eram mantidos em cativeiro. Isso era possível de um lado, através do reconhecimento do sofrimento do outro e da condição comum que atravessavam, mas também pela dança e crenças que alcançavam uma forma de identificação sígnica, construída a partir de ritos e danças, jogos e linguagem própria de cada grupo.
A religião e a dança constituíram assim importantes fontes de resistência e de identidade, tanto individual quanto coletiva, eis que o preparo de poções e a possibilidade de feitiçarias capazes de matar (que nada mais eram que a manipulação de veneno para este fim) criavam uma mística ao redor do poder dos praticantes das religiões africanas. O candomblé e a umbanda como resultados desta forma identitária demonstram a tentativa de sobrevivência destes escravos de algo inerente a sua cultura, a um segredo e um saber seu, retido e repassado aos seus.
De outro lado, a assimilação da religião católica por certas práticas de cultura religiosa escrava, apropriando-se dos santos e a seu modo, redefinindo sua identidade associando-os a figuras da natureza ou que representavam ídolos de origem africana também demonstra esta capacidade de resistência coletiva e de uma formação de uma identidade cultural com signos próprios. A necessidade de pactos com pessoas brancas dotadas de algum poder para sua proteção era perfeitamente vislumbrada pelos negros, como ressalta Reis na descrição de sua obra. A lógica das negociações era uma lógica de preservação (muitas vezes individual).

Em razão dessa capacidade de resistência, quer coletiva, quer individual, os senhores acabavam formando alianças e pactos com seus escravos (como por exemplo, a expectativa de alforria por bons serviços, ou pela compra), as quais eram constantemente rompidas, criando contrariedade entre os escravos. Isso, aliado ao alto preço do escravo local com a proibição da entrada de novos escravos acabava tornando necessária aos senhores de escravos a adoção de políticas que quebrassem os elos sociais estabelecidos nas senzalas das Fazendas ou nas senzalas urbanas. Segundo Couceiro e Araujo, a transferência de escravos, a venda de alguns a troca pois outros possibilitava esta ruptura, pois que os recém chegados eram vistos como estranhos, desconheciam os signos daqueles que ali estavam e precisavam adaptar-se constantemente. Os laços familiares também eram rompidos desta forma, enfraquecendo a possibilidade de fortalecimento de laços de resistência coletiva mais violentos.
As lutas, as fugas, as rebeliões e os Quilombos, por sua vez, demonstram a tentativa de articulação de movimentos de resistência deste escravo oprimido em um momento histórico de total ausência de condições de liberdade e autonomia. A capoeira como dança e como arma de luta se destaca. A construção dos Quilombos como espaço de luta e resistência, bem como de asilo dos escravos fugitivos demonstra que nem todos os cativos consentiram livremente a condição a que foram submetidos pelos senhores de escravo, pelos mercadores e traficantes que os fizeram mercadoria valiosa após 1808.
Desta forma, a breve análise das discussões apontadas nos leva a refletir sobre os problemas relativos a construção da identidade e de organização de uma resistência contra a ausência de vínculos de proteção ou diante de uma realidade de aniquilamento. Conclui-se que em situações de extrema necessidade os indivíduos e os grupos acabam se reconhecendo e se organizando a partir de signos próprios e compartilhados, de códigos culturais, de formas de ação e referencial religioso ou místico, a fim de construir estratégias de resistência e de construção identitária.

* Wollmann. Andréa Madalena. Texto elaborado a partir das discussões e obras lidas durante a disciplina Sujeitos sociais e Proteção Social, sob orientação do professor João Bôsco Hora Góis, no Mestrado de Política Social da UFF.

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