sexta-feira, 31 de julho de 2009
Quinto Ensaio.
Por um novo paradigma ao ensino do Direito*.
O ensino jurídico é um dos temas que abrasa o pensamento de todos aqueles que, vinculados ou não ao mundo jurídico, pensam uma democracia para o Brasil eis que a perpetuação do autoritarismo e das condições que mantém as desigualdades sociais e impedem a ampliação da cidadania no país, está ligado, de forma evidente, à contribuição de nossas faculdades e cursos de direito retrógrados e estagnados. Conforme argumenta Horácio W. Rodrigues(1), o ensino jurídico brasileiro, desde sua origem foi marcado como “um ensino voltado à formação de uma ideologia e sustentação política e à formação de técnicos para ocuparem a burocracia estatal”,características que continuam ainda presentes, hoje, sob novas formas e matizes.
As preocupações com o ensino jurídico no país, infelizmente, têm sido focadas apenas no âmbito da “metodologia didático-pedagógica” mais adequada ao ensino do Direito e no curriculum mais apropriado dos cursos, centrando-se na discussão sobre a bipolaridade da teoria versus prática. Esquece-se que o ensino jurídico não é apenas uma fonte material do Direito, uma vez que forma o senso comum sobre o qual se estrutura a prática dos egressos dos cursos jurídicos, bem como é fonte política, pois os saberes por ele transmitidos reproduzem a sociedade autoritária e o estado burocrático existente no país, servindo como força estagnadora e como empecilho à construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e pluralista. Conforme Roberto Aguiar(2), “o direito é a ideologia que sanciona, é a linguagem normativa que instrumentaliza a ideologia do legislador ou a amolda às pressões contrárias, a fim de que sobreviva”.
O ingresso do aluno na vida acadêmica é um momento de profundas mudanças em seu universo de conhecimento, um convite a novas descobertas, a desvendar um mundo desconhecido, porém fascinante que, aos poucos, vai lhe sendo revelado por seus mestres a medida em que estes abordam as características intrínsecas e extrínsecas da profissão escolhida. Conforme muito bem refere Michel Miaille(3), o professor terá a tarefa de guia nesta jornada rumo ao saber, fazendo com que o aluno descubra a ciência jurídica, penetrando neste universo novo e desconhecido.
Não se pode negar o fato de que nossa atualidade caracteriza-se pelo pensamento apresentado de forma fragmentada, provisória e em constante reformulação conforme os interesses dos que tem o poder de comando de uma sociedade onde o cidadão confunde-se mais e mais com um consumidor. Neste contexto, também a introdução ao saber universitário se dá por vários caminhos condicionados a valores e ideologias. Não há, portanto, neutralidade nesta jornada, pois tanto o estudante quanto o professor situam-se na academia a partir de convicções e valores que lhes foram postos no decorrer de sua formação, pelas estruturas que influenciam a construção de sua personalidade, tais como família, escola, igreja, meios de comunicação, etc. A atividade de ensino nunca será totalmente isenta de condicionamentos ideológicos.
Existem, assim, várias introduções possíveis ao aluno neste “novo mundo” ao qual ele adentra, cada qual possui racionalidade e interesses próprios, por vezes setorizados. Ao professor cabe a responsabilidade (das mais difíceis, uma vez que as estruturas condicionam ao aluno a não pensar) de abrir-lhe as portas do conhecimento e orientar-lhe em sua caminhada acadêmica, com seriedade e competência, instigando ao aluno a reencontrar a “paixão” pelo saber. Conforme Maria Cândida de Moraes(4),
“(...) a pedagogia atual não poderá se contentar em ser mera transmissora de conteúdos e informações, embora como insumo a informação seja fundamental. Ela deverá ir muito além, pois a emancipação, pessoal e socialmente, requer muito mais do que a mera transmissão e a mera reprodução da informação; ela exige a capacidade de construir e reconstruir conhecimentos, ou seja, o desenvolvimento da autonomia”.
O Direito é parte integrante das ciências sociais e como tal é um conhecimento eminentemente crítico(5). Ao pedagogo-jurídico importa fazer aparecer ao aluno o invisível no processo do conhecimento, indo além das aparências. Conforme Darcísio Corrêa(6), não se pode captar a complexidade da realidade social pela mera descrição do que é visível, pela simples experiência sensível. O professor de direito deve se conscientizar de seu compromisso social, de sua atuação política na sociedade pois é um microlegislador que poderá reproduzir o sistema de desigualdades sociais em que se encontra inserido ou semear novas idéias e utopias reforçando a luta pela mudança e pela concretização da democracia.
Conforme muito bem refere Horácio W. Rodrigues(7), o problema do ensino jurídico não se reduz a questões curriculares e didático-pedagógicas. Currículo e metodologia do ensino são meras conseqüências de uma estrutura de pensamento e de uma prática já estabelecidas; são conseqüência do senso comum dos juristas. Há que se ter consciência que o professor de direito é apenas um estudante mais experiente, que já galgou alguns passos em direção ao saber, o qual apenas orienta o aluno na sua tarefa de acumulo do conhecimento, com os meios e informações de que dispõe. Logo, o jurista não consegue ensinar aquilo que ainda não assimilou.
Ressalte-se o fato de que a maioria dos professores de direito não tem qualquer formação na área educacional, sendo, em sua grande parte, advogados, promotores, juízes, delegados, ou seja, graduados que exercem o magistério ou como forma de algum status que os ajudará nas suas reais carreiras, ou como forma de complementação da renda. Como conseqüência disso, não vivem a realidade acadêmica e não se dedicam à pesquisa, restringindo-se a reproduzir em sala de aula as velhas lições de seu tempo de estudantes somadas à sua prática na atividade profissional que desenvolvem. Como agravante desta situação, os professores são divididos em disciplinas diversas, com conteúdo programático pré-definido de forma estanque, como se o direito não fosse um todo que se complementa, o que dificulta ainda mais a troca de idéias e o amadurecimento de novas posições.
Neste ponto, emerge uma questão delicada, a capacidade do professor, embora lecionando uma disciplina curricular específica, transmitir ao aluno um conhecimento interdisciplinar do direito. A questão do ensino interdisciplinar (tão em voga) tem de ser revista, não podendo figurar apenas como a introdução no currículo de uma série de disciplinas de outras áreas do conhecimento que propiciem, cada uma delas, a sua visão isolada do fenômeno jurídico, de forma que acaba por trazer ao aluno uma série de visões estanques, sem contudo, propiciar-lhe uma compreensão de sua totalidade. Aliás, o que tem sido feito em termos de educação jurídica tem mais o caráter de reprodução de velhos conhecimentos que de um caráter multidisciplinar ou mesmo interdisciplinar.
A sociedade vive em um processo constante de movimento e o aluno tem de estar apto a acompanhar estas mudanças e alcançar à sociedade os meios de que ela necessita para concretizar-se justa. Neste sentido, a plena apreensão do direito enquanto objeto de reflexão exige mais que um saber técnico, pois requer um estudo profundo dos fatores históricos que o produziram bem como das implicações que joga sobre o futuro. Com isso, o conhecimento crítico-científico, ao invés de apenas descrever os acontecimentos sociais juridicamente regulados, insere-os na totalidade do passado e do futuro da sociedade que o produziu.
O pensamento crítico necessário ao egresso na atualidade é mais que o pensamento abstrato, é um pensamento dialético que parte da experiência de que o mundo é complexo: o real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela seja consciente ou inconsciente. Mais precisamente, o pensamento dialético ou crítico é aquele que compreende esta existência do contraditório, pois, conforme Miaille(8),
“(...) este, encara-o não só no seu estado atual, mas na totalidade de sua existência, quer dizer, tanto naquilo que o produziu como no seu futuro. Este pensamento pode pois, fazer aparecer o que a realidade presente me esconde atualmente e que, no entanto, é igualmente importante. A realidade é coisa diversa e muito mais do que está codificado (...) na linguagem dos fatos”.
Urge que nos debrucemos à investigar os problemas atuais do ensino jurídico e as alternativas possíveis para que o mesmo possa corroborar para a formação de um acadêmico que consiga compreender o direito em relação aos fatos que lhe permitiram a existência, bem como, em relação ao que projeta para o futuro, tornando-o solidário com os demais fenômenos da história social, bem como com as ciências que tentam explicar estes fenômenos. É necessário encontrar alternativas para que o pedagogo-jurídico consiga instigar o estudante a munir-se de informações (das mais variadas fontes de conhecimento) e estimulá-lo a cultivar valores ético-políticos oriundos de posicionamentos conscientes, embasados em um raciocínio lógico, mas também sensível, humanista, uma vez que, o perfil ideal do bacharel em direito aponta para um profissional bem informado, munido de uma formação voltada para o pleno exercício da cidadania. Apenas essa dupla dimensão permite a percepção da realidade além das aparências(9). Não existem, portanto, dogmas irrefutáveis nem verdades absolutas, também inexistem donos da verdade, sem preconceitos e estereótipos.
Neste ponto, me permito citar novamente as palavras do professor Darcísio Corrêa(10), pois comungo de cada uma delas:
“A busca de novas verdades pressupõe espíritos desarmados, pois a construção do saber implica constantes reformulações, que de forma alguma significa abdicar dos princípios e valores fundamentais que norteiam nossa jornada. O que conta, em última análise, é a vida, vivida na plenitude de nossas limitações. Cabe ao direito [e ao pedagogo-jurídico, me permito afirmar], enquanto regulador da conduta social propiciar as condições de possibilidade de sua efetiva concretização em termos de igualdade, dignidade e solidariedade humanas. Que as presentes reflexões sejam um marco a mais na sempre renovada tarefa de construção da cidadania num contexto planetário de globalização voltado para a solidariedade e para a reciprocidade ao invés da exclusão social e da descartabilidade do ser humano.
É nesta jornada rumo ao engajamento por um conhecimento jurídico resultante de uma proposta de alternativas para conseguirmos a um ensino de qualidade humanista que precisamos nos esforçar, traçando assim, novas perspectivas para a educação e construção da cidadania no Brasil. Afinal, sem as utopias não há transformação da realidade e sem possuirmos esperança de construirmos um mundo novo, não há razão para a vida. A mudança social, em nosso entender, começa pelos bancos acadêmicos.
Referências:
(1) RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino Jurídico: Saber e Poder. São Paulo: Acadêmica. 1988, p. 09.
(2) AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito Poder e Opressão. 2ª ed. São Paulo: Alfa-omega, 1984, p. 79.
(3) MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito. Lisboa: Moraes Editores, 1994. p. 17.
(4)MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. São Paulo: Papirus, 1997. p. 145/146.
(5) CORREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico políticas. Ijuí: Unijuí, 1999. p. 15. Segundo o autor, o termo crítico ultrapassa seu significado habitual, objetivando: “por em questão o conjunto ou a globalidade do fenômeno jurídico dentro das relações sociais.”
(6) CORREA. Ob. Cit. p. 16.
(7) Ob. Cit. p. 107.
(8) Ob. Cit. p. 22. Grifos meus.
(9) CORREA, Ob. Cit. p. 18.
(10) CORREA. Idem. p. 19.
* WOLLMANN, Andréa Madalena. Texto oriundo do projeto de pesquisa: Novos Olhares para o ensino Jurídico no Brasil.
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quinta-feira, 30 de julho de 2009
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Para quem reclamou da ausência da poesia
"Tanto a dizer
Tanto a expor
Tudo a propor
Tantos verbos ainda não conjugados
Palavras que não foram escritas...
E as idéias
Frente ao branco papel
Dão "branco"...
Um ponto,
E vejo o universo
Sinto o verso
Latente
Pulsando
Infiel,
Escorrer por entre os dedos.
Nenhum rabisco,
E o papel
Em branco
Demonstra
O quanto
É difícil
Expor o que se sente
E a mente
Estéril
Dá "branco"
Pois não sabe
fazer caber
No papel branco
O universo de pensamentos
coloridos
Eivados de sentimentos
Que não consegue
Descrever."
(Andréa Wollmann - julho/2009)
terça-feira, 28 de julho de 2009
Desigualdade social no Brasil
Para pensar...
com toda a minha irresignação.
com toda a minha irresignação.
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Quarto ensaio
Reminiscências e reflexão: direito em metarmofose.*
Lembro-me da minha entrada na Universidade e neste passeio pela vida se vão quatorze anos que não vi passar. Adentrei a Universidade no Curso de Direito, sedenta por mudança, sedenta por Justiça, com a vontade de mudar o mundo comum aos jovens idealistas que adentram todos os anos os bancos das faculdades de Direito neste país.
A Unijuí era um lugar que nos propunha ser diferente, fazer a "diferença". Uma proposta de Universidade, de reunião em prol da busca do conhecimento. Eu, que nunca sonhara estar numa Universidade, ali estava, vinda de escola pública, de família pobre, depois de tantos afirmarem, por anos, que era impossível à "nós" aquele espaço de saber.
Logo conhecia o professor de Filosofia do Direito que nos fazia a seguinte pergunta: Que é Direito, que é Justiça, que é Democracia? Lembro que me foi dado ler o livro de Roberto Lyra Filho (Que é Direito), onde ele tentava definí-lo como sendo: “...............” (o que ele é mesmo (?)).
Inquietação, dificuldade de entender o que nos propunha o professor (a mesma inquietação que hoje vejo em meus alunos)... nossas bases foram rompidas e desde então nunca mais fui a mesma, tive de rever as teorias em mim enxertadas ao longo dos meus 21 anos de então.
Passo seguinte, fui apresentada ao livro de Roberto Aguiar que parecia responder a pergunta sobre o que é Justiça e passei a estudá-lo, vendo como ele brilhantemente definia Justiça como sendo uma bailarina que ora dançava com os poderosos, ora com os miseráveis, num balé estranho cuja profundidade me escapava a percepção. Também tentei conceituar o que seria direito em sua obra#, e descobri que ele anda junto com o poder e a opressão, mas que ele poderia simbolizar um espaço de libertação.
Aos poucos, me apresentaram Hobbes, Locke, Rosseau, Monstesquieu, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Kant, Kelsen, Bobbio e tantos outros... tantas estrelas agora abrilhantavam meu obscuro céu, sedenta de conhecimento, bebia da taça que me serviam com a gula de uma criança. Por fim, certo dia me chega às mãos um texto de Warat... um descortinar da realidade, um rever a linguagem, os símbolos, a vida... um descortinar de uma nova possibilidade de análise, hermenêutica. Warat foi paixão a primeira vista, ao primeiro texto. Mas o direito alternativo, em voga, também nos apaixonava. Assim, cruzei cinco anos na velocidade jamais imaginada por mim e quando percebi, me formei, alternativa, em meados de 2000.
Após algumas leituras, me descobri garantista, e depois disso, me surpreendi resgatada por Warat, mensurando a possibilidade de um movimento surrealista no direito. O direito, como até aqui pensando, foi incapaz de resolver velhas questões, e outras novas despontam buscando respostas.
Através dessa pequena catarse, o que se vislumbra é a constante possibilidade de mudança: a metarmofose. Assim, também o direito precisa movimentar-se.
Ideal do direito é que seja emancipatório e não mais, legitimador de uma ordem jurídica. Eis a perspectiva Waraniana.
Passamos muito tempo discutindo com duas dimensões tradicionais de direito – jusnaturalismo e juspositivismo que a partir da Segunda Guerra mundial entraram em crise, ante aos efeitos dos massacres de então. Em termos de refinamento teórico essa crise se apresenta nos anos 70, pelas tentativas de explicar o mundo do ser pelo mundo do dever ser.
Ao mesmo tempo reaparecia o ante-positivismo resgatando a pricipiologia e os valores contidos nas regras. As antinomias precisavam ser resolvidas e usamos critérios de ordem pratico-tecnologicas para tanto.
Quando apareciam dilemas onde valores fundamentais apareciam em conflito e precisavam organizar a dogmática constitucional contemporânea – neo-constitucionalismo (as normas só dizem o que alguns leitores dizem que as normas dizem). Arbítrio de decisão não é arbitrariedade. Surgem as discussões hermeneutico-consitucionais.
O verdadeiro fundamento da norma surge das expressões sociais, no diz Warat. As antigas discussões de pronto estão ultrapassadas pela história. Nos últimos 20 anos no mundo todo, demosntramos a carência dessas respostas as questões que se apresentam.
A velocidade da globalização deságua também na globalização da responsablidade, devido a velocidade das informações. Na visão Waratiana somos responsáveis pelo mundo, pela humanidade. Pela facilidade de transporte, a migração aumenta e os valores circulam com maior velocidade no mundo, estas pessoas são portadores de valores subjetivos próprios de suas origens que aumentam a diversidade de alteridade no mundo.
Como fica a questão da igualdade, se somos diversos. Estamos dispostos a defender a igualdade quando a igualdade corresponde o direito a diferença?
A realidade nos confronta com inúmeros processos contraditórios, (global, local, diversidade e homegeneidade... etc) e constantes crises das representações politicas como bem diz Warat. O social não é natural, a realidade não é materialidade certa, é sentido, símbolo (significação agregada de sentido), artefato construido pelo homem, historicamente e de forma intersubjetiva, carregadas de contextualidade, de hegemonia.
Precisamos construir uma nova teoria do imaginário. Para tanto, necessário conjugarmos uma ação descrita na frase repetida pelo Teatro Mágico: "Os opostos se distraem, os dispostos, se atraem". Sejamos nós, atraidos por uma proposta construtiva de uma nova realidade.
* Wollmann, Andréa Wollmann.
"Sintaxe À Vontade
O Teatro Mágico
Composição: Fernando Anitelli
Sem horas e sem dores
Respeitável público pagão
a partir de sempre
toda cura pertence a nós
toda resposta e dúvida
todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser
todo verbo é livre para ser direto e indireto
nenhum predicado será prejudicado
nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase e ponto final!
afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas
e estar entre vírgulas pode ser aposto
e eu aposto o oposto que vou cativar a todos
sendo apenas um sujeito simples
um sujeito e sua oração
sua pressa e sua verdade,sua fé
que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não
que enxerguemos o fato
de termos acessórios para nossa oração
separados ou adjuntos, nominais ou não
façamos parte do contexto da crônica
e de todas as capas de edição especial
sejamos também o anúncio da contra-capa
mas ser a capa e ser contra-capa
é a beleza da contradição
é negar a si mesmo
e negar a si mesmo
pode ser também encontrar-se com Deus
com o teu Deus
Sem horas e sem dores
Que nesse encontro que acontece agora
cada um possa se encontrar no outro
até porque...
tem horas que a gente se pergunta...
por que é que não se junta
tudo numa coisa só?"
Lembro-me da minha entrada na Universidade e neste passeio pela vida se vão quatorze anos que não vi passar. Adentrei a Universidade no Curso de Direito, sedenta por mudança, sedenta por Justiça, com a vontade de mudar o mundo comum aos jovens idealistas que adentram todos os anos os bancos das faculdades de Direito neste país.
A Unijuí era um lugar que nos propunha ser diferente, fazer a "diferença". Uma proposta de Universidade, de reunião em prol da busca do conhecimento. Eu, que nunca sonhara estar numa Universidade, ali estava, vinda de escola pública, de família pobre, depois de tantos afirmarem, por anos, que era impossível à "nós" aquele espaço de saber.
Logo conhecia o professor de Filosofia do Direito que nos fazia a seguinte pergunta: Que é Direito, que é Justiça, que é Democracia? Lembro que me foi dado ler o livro de Roberto Lyra Filho (Que é Direito), onde ele tentava definí-lo como sendo: “...............” (o que ele é mesmo (?)).
Inquietação, dificuldade de entender o que nos propunha o professor (a mesma inquietação que hoje vejo em meus alunos)... nossas bases foram rompidas e desde então nunca mais fui a mesma, tive de rever as teorias em mim enxertadas ao longo dos meus 21 anos de então.
Passo seguinte, fui apresentada ao livro de Roberto Aguiar que parecia responder a pergunta sobre o que é Justiça e passei a estudá-lo, vendo como ele brilhantemente definia Justiça como sendo uma bailarina que ora dançava com os poderosos, ora com os miseráveis, num balé estranho cuja profundidade me escapava a percepção. Também tentei conceituar o que seria direito em sua obra#, e descobri que ele anda junto com o poder e a opressão, mas que ele poderia simbolizar um espaço de libertação.
Aos poucos, me apresentaram Hobbes, Locke, Rosseau, Monstesquieu, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Kant, Kelsen, Bobbio e tantos outros... tantas estrelas agora abrilhantavam meu obscuro céu, sedenta de conhecimento, bebia da taça que me serviam com a gula de uma criança. Por fim, certo dia me chega às mãos um texto de Warat... um descortinar da realidade, um rever a linguagem, os símbolos, a vida... um descortinar de uma nova possibilidade de análise, hermenêutica. Warat foi paixão a primeira vista, ao primeiro texto. Mas o direito alternativo, em voga, também nos apaixonava. Assim, cruzei cinco anos na velocidade jamais imaginada por mim e quando percebi, me formei, alternativa, em meados de 2000.
Após algumas leituras, me descobri garantista, e depois disso, me surpreendi resgatada por Warat, mensurando a possibilidade de um movimento surrealista no direito. O direito, como até aqui pensando, foi incapaz de resolver velhas questões, e outras novas despontam buscando respostas.
Através dessa pequena catarse, o que se vislumbra é a constante possibilidade de mudança: a metarmofose. Assim, também o direito precisa movimentar-se.
Ideal do direito é que seja emancipatório e não mais, legitimador de uma ordem jurídica. Eis a perspectiva Waraniana.
Passamos muito tempo discutindo com duas dimensões tradicionais de direito – jusnaturalismo e juspositivismo que a partir da Segunda Guerra mundial entraram em crise, ante aos efeitos dos massacres de então. Em termos de refinamento teórico essa crise se apresenta nos anos 70, pelas tentativas de explicar o mundo do ser pelo mundo do dever ser.
Ao mesmo tempo reaparecia o ante-positivismo resgatando a pricipiologia e os valores contidos nas regras. As antinomias precisavam ser resolvidas e usamos critérios de ordem pratico-tecnologicas para tanto.
Quando apareciam dilemas onde valores fundamentais apareciam em conflito e precisavam organizar a dogmática constitucional contemporânea – neo-constitucionalismo (as normas só dizem o que alguns leitores dizem que as normas dizem). Arbítrio de decisão não é arbitrariedade. Surgem as discussões hermeneutico-consitucionais.
O verdadeiro fundamento da norma surge das expressões sociais, no diz Warat. As antigas discussões de pronto estão ultrapassadas pela história. Nos últimos 20 anos no mundo todo, demosntramos a carência dessas respostas as questões que se apresentam.
A velocidade da globalização deságua também na globalização da responsablidade, devido a velocidade das informações. Na visão Waratiana somos responsáveis pelo mundo, pela humanidade. Pela facilidade de transporte, a migração aumenta e os valores circulam com maior velocidade no mundo, estas pessoas são portadores de valores subjetivos próprios de suas origens que aumentam a diversidade de alteridade no mundo.
Como fica a questão da igualdade, se somos diversos. Estamos dispostos a defender a igualdade quando a igualdade corresponde o direito a diferença?
A realidade nos confronta com inúmeros processos contraditórios, (global, local, diversidade e homegeneidade... etc) e constantes crises das representações politicas como bem diz Warat. O social não é natural, a realidade não é materialidade certa, é sentido, símbolo (significação agregada de sentido), artefato construido pelo homem, historicamente e de forma intersubjetiva, carregadas de contextualidade, de hegemonia.
Precisamos construir uma nova teoria do imaginário. Para tanto, necessário conjugarmos uma ação descrita na frase repetida pelo Teatro Mágico: "Os opostos se distraem, os dispostos, se atraem". Sejamos nós, atraidos por uma proposta construtiva de uma nova realidade.
* Wollmann, Andréa Wollmann.
"Sintaxe À Vontade
O Teatro Mágico
Composição: Fernando Anitelli
Sem horas e sem dores
Respeitável público pagão
a partir de sempre
toda cura pertence a nós
toda resposta e dúvida
todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser
todo verbo é livre para ser direto e indireto
nenhum predicado será prejudicado
nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase e ponto final!
afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas
e estar entre vírgulas pode ser aposto
e eu aposto o oposto que vou cativar a todos
sendo apenas um sujeito simples
um sujeito e sua oração
sua pressa e sua verdade,sua fé
que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não
que enxerguemos o fato
de termos acessórios para nossa oração
separados ou adjuntos, nominais ou não
façamos parte do contexto da crônica
e de todas as capas de edição especial
sejamos também o anúncio da contra-capa
mas ser a capa e ser contra-capa
é a beleza da contradição
é negar a si mesmo
e negar a si mesmo
pode ser também encontrar-se com Deus
com o teu Deus
Sem horas e sem dores
Que nesse encontro que acontece agora
cada um possa se encontrar no outro
até porque...
tem horas que a gente se pergunta...
por que é que não se junta
tudo numa coisa só?"
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domingo, 26 de julho de 2009
Terceiro Ensaio
Qual o local da diferença no debate sobre solidariedade?*
Em moda na atualidade, o discurso da solidariedade nos faz refletir a possibilidade da construção de um espaço onde seja possível uma aliança entre as diferenças. Qual o local da diferença no debate sobre solidariedade? O que é a solidariedade, uma possibilidade de projeto, uma utopia, um referencial teórico?
Vislumbramos a solidariedade em Richard Rorty como um “slogam”, uma possibilidade de análise ou discurso para nos fazer repensar as relações sociais, os outros e a nós mesmos. Um instrumento para possibilitar o reconhecimento da existência da diferença e a possibilidade de conciliação entre os sujeitos. Em seu texto sobre Rorty, o professor João Bôsco Hora Góis nos demonstra esta necessidade de construção de um espaço de alteridade social, onde a solidariedade possa ser vista como instrumento capaz de fazer refletir e rever os espaços sociais destinados as diferenças Há muito trabalhamos a diferença com certo receio. Codificamos as condutas, as pessoas, os usos, para facilitar uma sensação de segurança capaz de traduzir uma possibilidade de previsibilidade de comportamento do outro, este ser que nos é desconhecido. Concentramos a perspectiva no indivíduo e utilizamos esta medida como referencial, desconsiderando as diferenças, discriminando-a. Elias nos refere bem este comportamento na obra os Estabelecidos e os Outsiders. O discurso individual, no entanto, não nos permite a possibilidade de construção de uma análise de percepção da alteridade.
Diante das mudanças estruturais e dos processos históricos, de tempos em tempos, revitalizamos estigmas antigos, redefinimos os marcadores das diferenças e mantemos a mesma postura de receio com aquelas identidades que aprendemos a observar e a isolar quer dentro de viés econômico, social, cultural ou mesmo preconceituoso.
Isso nos impede qualquer tentativa de estabelecimento de laços de solidariedade.
A alocução da solidariedade deverá ser observada como instrumento capaz de nos fazer ampliar a percepção do outro. O reconhecimento e a aproximação daquele outro que está ao nosso lado, como também, daquele outro que está do outro lado do rio, e daquele que está ainda mais além. Uma possibilidade de busca de um novo modelo comportamental e político. Não mais a construção de uma Pátria, eis que a figura do pai autoritário, provedor e punitivo não resolve mais os problemas sociais que enfrentamos; nem de uma Mátria, eis que ainda estaríamos diante de um discurso de autoridade da mãe entre estabelecidos e estranhos. Uma possibilidade de uma construção de uma alternativa, uma Fátria, como menciona Maria Rita kell, ou comunidade entre irmãos.
O lugar da identidade na solidariedade está exatamente na possibilidade, através dessa ferramenta de análise, do reconhecimento da alteridade humana. A busca de uma nova utopia, a da concretização de uma irmandade humana ou de uma humana irmandade, onde o conhecimento do eu, do indivíduo, seja um dado construído através da percepção da existência do outro. O reconhecimento da dependência recíproca de todos os seres.
Para haver solidariedade, é necessária a construção de laços de confiança, o que só é possível a partir de uma ótica disposta a aceitar a alteridade, a diferença, o outro. O outro como elemento de reconhecimento do eu. Um pacto não mais entre indivíduos, mas entre alteridades com a finalidade de uma sociedade mais justa, democrática, solidária e participativa. Não mais discutir o que é interessante ao indivíduo na esfera pública, mas quais as demandas comuns entre as alteridades devem ser atendidas na busca de um lócus de solidariedade. Um compromisso humano na gestão de um bem comum onde as diferenças sejam respeitadas e incluídas no processo político.
* Wollmann, Andréa Madalena. Texto elaborado a partir da segunda avaliação da disciplina Sujeitos sociais e proteção social, sob a orientação do professor João Bôsco Hora Góis, no Mestrado em Política Social da Faculdade de Serviço Social da UFF.
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sexta-feira, 24 de julho de 2009
Um texto de Amilton Bueno de Carvalho.
Este Desembargador é um dos responsáveis pela minha (de)formação acadêmica. Digamos que ele auxiliou neste processo de pensar, repensar e aplicar do Direito com uma visão mais humanista,e porque não, alternativa. Seus diálogos sobre Justiça acompanham a minha vida acadêmica e docente. Já pude agradecê-lo pessoalmente por esta referência, ocasião em que conheci a pessoa Amilton, despida da Toga, mas jamais de suas convicções e seu brilhantismo.
Hoje,embora distante, posso chamá-lo amigo e como humilde discípula, depois de tanto repassar o texto a seguir aos meus alunos retiro-o do armário empoeirado do meu HD e o posto neste blog à disposição daqueles apaixonados pela Justiça, como eu, que aqui um dia cheguem.
Tenho plena convicção que a luta pelo direito não possui neutralidade, mesmo quando nos colocamos como neutros, assumimos uma posição: a de cima do muro, a nossa, ou a do poder instituído. Prefiro o lado da Justiça.
Deixo o texto na íntegra para vocês.
"LEI, PARA QUE(M)?
Amílton Bueno de Carvalho, Desembargador no Rio Grande do Sul
SUMÁRIO: I. Introdução; II. Crise da Legalidade – sua possível superação: os princípios; II. (a) Mas o que são princípios? II. (b) E suas características? II. (c) De onde vêm? II. (d) E sua aplicação? III. Mas e a lei, então, para que(m) serve? IV. E a lei penal?h
INTRODUÇÃO
O presente texto foi instigado pelo precioso amigo James Tubenchlak e vai em homenagem a ele: sua contribuição para o avanço da visão crítica no direito brasileiro marca este tempo em que se busca superar o olhar (e atuar) conservador (às vezes, reacionário) que alcança o senso comum dos operadores jurídicos.
A preocupação central de James – ao menos, a mim manifestada – está em que, principalmente no campo penal, a legalidade tem sido negada sistematicamente em prejuízo dos acusados. Mesmo entre os positivistas declarados há certa hipocrisia – consciente ou não – ao violar a base teórica que sustentam (Lyra Fº, aliás, já dizia: “a dominação é hipócrita” – “O que é Direito”, ed. Brasiliense, 4ª ed., 1984, p. 118).
Ao aceitar o desafio, procuro, neste trabalho, discutir (a) a crise da legalidade e sua possível superação, (b) a importância da lei e (c) quando se necessita da legalidade – em especial no campo penal.
Reitero o que tenho referido na quase totalidade dos meus textos: não tenho formação teórica agudizada, meu eventual saber emerge da atuação, por mais de duas décadas, como magistrado. Logo – e diferente não poderia deixar de ser –, sou marcado por este local de fala.
CRISE DA LEGALIDADE – SUA POSSÍVEL SUPERAÇÃO: OS PRINCÍPIOS
Cada vez mais fica claro entre os pensadores do direito que o princípio da legalidade está em profunda crise: a lei não consegue dar respostas suportáveis às situações que ela busca prever – seja pela inflação legislativa, pelo seu mau uso (e criação), pela impossibilidade lógica de alcançar a realidade que se altera brusca e incontrolavelmente, pela inconfiabilidade no legislador.
Germana de Oliveira Moraes (“Controle Jurisdicional da Administração Pública”, ed. Dialética, 1999) diz que:
“Como fruto da constante e renovada relação dialética entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ‘o direito por regras’ do Estado de Direito cedeu lugar, no constitucionalismo contemporâneo, ao ‘direito por princípios’” (p.19).
E, em momento seguinte, acompanha Paulo Bonavides;
“...com o declínio da primeira concepção do Estado de Direito, vinculado doutrinariamente ao princípio da legalidade, já superado pelo princípio da constitucionalidade, sob a égide do segundo Estado de Direito, no qual houve o deslocamento do centro da gravidade da ordem jurídica para o respeito aos direitos fundamentais” (p. 77).
O próprio Bonavides (“O Princípio Constitucional da Proporcionalidade e a Proteção dos Direitos Fundamentais” – Rev. da Fac. de Direito da UFMG, vol. 34, 1994, p. 281) vai um pouco mais longe ao entender que o “princípio da legalidade, com apogeu no direito positivo da Constituição de Weimar” está em “declínio, ou de todo ultrapassada”.
Elimar Szaniawski (“Considerações sobre o Princípio da Proporcionalidade” – Rev. dos Mestrandos em Dir. Econ. da UFBA, 1999, p. 512) segue na mesma linha:
“Na realidade, ocorre que o legislador moderno não atua mais dentro de um espaço de absoluta liberdade, tal qual agia ao tempo em que predominava o princípio da legalidade. Sob a égide do princípio da constitucionalidade, encontramos mecanismos que têm por fim limitar a liberdade do legislador, conquista do atual Estado de Direito”.
René David (“Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo”, p. 137) aponta que a “insuficiência da ordem legislativa”, “deixou bem nítido que o direito francês não se confundia com a lei”. Willis Santiago Guerra Filho (“Princípios da Isonomia e da Proporcionalidade como Garantias Fundamentais”, Ciência Jurídica, 1996, vol. 68, p. 297) entende que se está frente a “uma fase ‘pós-positivista’, com a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo”.
De logo – para além do vislumbrar da crise de legalidade rasteira, com a perda do caráter absoluto da lei – vê-se das citações anteriores que já se aponta para a forma de superar a legalidade insuficiente à previsão dos casos ou à busca de maior justiça aos resultados da aplicação: os princípios gerais do direito.
Em outro local, já me defini (“Direito Alternativo em Movimento”, ed. Luam, 4ª ed., p. 78):
“Outrossim, como a legalidade fria, muitas e muitas vezes, é entrave a decisões democráticas, busca-se ter o direito em construção, abandonando-se a visão de se o ter como dado. Ou seja, ousa-se criar ao invés de buscar apenas revelar o direito emergente do Estado.
“Então o limite passou a ser outro, ultrapassando a legalidade estreita, para alcançar os princípios gerais do direito do mundo civilizado (aqui se incluindo os direitos humanos).
“E estes princípios são tidos como históricos, construídos pela sociedade civil na sua caminhada em busca da utópica vida em abundância para todos. Estes princípios servem de norte interpretativo de todo o fenômeno jurídico e dão conteúdo racional ao ato decisório”.
II - (a) Mas o que são princípios?
Parece-me que a definição de Dworkin alcança bem o fenômeno: “uma norma que é mister observar, não porque torna possível ou assegura uma situação econômica, política ou social julgada conveniente, mas por ser um imperativo de justiça, de honestidade ou de alguma outra dimensão moral” (Francisco Balon Aguirre, “Sistema Jurídico Aguaruna e Positivismo”, in Qual Direito? Ed. Jajup, p. 19/20).
Todavia, vários são os olhares – em busca de conceituação – dos princípios:
Jesús Leguina Villa – cit. por Germana, op. cit., p. 19 – entende que eles “expressam e articulam os valores centrais, as representações jurídicas gerais e as opções básicas de cada sistema jurídico”. E Germana (p. 20) cita também Bonavides, são “a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder, e são compreendidos, equiparados e até confundidos com os valores”.
Elimar, no texto antes referido (p. 506/507), após citar Bandeira de Mello – que o tem como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele” – refere que os autores designaram-o como “as ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas”.
San Tiago Dantas (citado por Leoni Lopes de Oliveira, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Material”, Doutrina 2000, publicação Instituto de Direito, p. 369) entende que são “como uma síntese das normas dentro de certos limites históricos”.
Eros Roberto Grau (“Licitação sem Objeto”, Rev. Trim. de Dir. Público, v. 10, p. 95), criativo como sempre, entende que se constituem em direito pressuposto: a base do direito posto.
Vê-se, pois, que princípios são os valores centrais do espaço jurídico (tido como “construção histórica” do homem em busca da dignidade cada vez mais humana, logo, embora absolutos em determinado momento, não são “eternos”, nem “dados”).
São o pano de fundo a orientar a criação das normas e a própria exegese. Deles, como diz Elimar, são irradiadas e imantadas as normas: de onde partem e onde devem chegar, uma espécie de efeito “bumerangue”.
Os princípios são o momento mais importante (diria, até sublime) de todo o ordenamento porque “imperativo de justiça”, ou seja, fim de todo o direito – positivado ou não.
II - (b) E suas características?
Willis – op. cit. – assim esclarece:
distingue-se das regras porque prescreve um valor, enquanto estas descrevem “uma hipótese fática e a previsão da conseqüência jurídica”;
apresentam, ao contrário das regras, maior abstração; não se reportam “a nenhuma espécie de situação fática” (a ordem jurídica é concebida por normas com menor ou maior abstração, desde a mais concreta – sentença – até se chegar aos princípios);
embora as regras possam entrar em rota de colisão, ao ponto de se chocarem, com os princípios tudo é diferente: “não entram em choque, são compatíveis uns com os outros”, acomodam-se.
No meu entender, quando se dá choque entre norma e princípio, vigora este porque é o informador daquela (aliás, neste momento estamos autorizados a negar não só a validade, mas até a vigência – no viés ferrajoliano – das leis).
Hart, no “Postscriptum” em debate com Dworkin (“La Decisión Judicial” – el debate Hart-Dworkin”, Siglo del Hombre Editora, estudo de César Rodriguez, 1997, Bogotá, p. 119) tem quase que idêntico entendimento:
“El primero es una cuéstion de grado: los principios, en relación a las reglas, son generales o no especificos, en el sentido en que a menudo lo que se consideraria como un número determinado de reglas puede ser mostrado como ejemplificación o instancia de un principio único. El segundo rasgo seria que los principios, por cuanto se referien más o menos explicitamente a algún propósito, meta, facultad o valor, son considerados, desde cierto punto de vista, como algo que resulta deseable preservar o ser objeto de adhesión y que, por ende, no sólo suministran una explicación o racionalidad de las reglas que los ejemplifican, sino que al menos contribuyen a sua justificación”.
O próprio César (loc. cit., p. 50/52), forte em Dworkin, diz que as regras, ao contrário dos princípios, “operan dentro de un esquema de todo o nada”, por isso, prossegue, as “reglas son conclusivas y los principios son no-conclusivos”.
II - (c) De onde vêm?
A maioria dos doutrinadores entende que os princípios têm como “ambiência natural o texto constitucional” (Willis, loc. cit., p. 299).
Ou seja, a Constituição – como síntese do ordenamento jurídico – carregaria, implícita ou explicitamente, a principiologia (o pano de fundo, a reserva ético-valorativa, o centro irradiador-imantador) que orienta o sistema.
Assim, necessária a positivação – ao menos implícita – dos princípios.
Sigo linha diversa. Tenho que os princípios – enquanto reserva ética, repito – não necessitam, à sua aplicação/existência, estar positivados – na Constituição ou em outra disposição legal. Estão acima e para além de qualquer positivação.
Os princípios – desde meu ponto de vista – são – como conquistas da civilização – inclusive orientação e limite ao próprio Poder Constituinte: é um núcleo duro da cidadania que só pode ser relegado (repito, historicamente considerado) com a atuação da própria humanidade ao destruir princípios antigos e na construção de novos (o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é “pressuposto” – para seguir Eros –, neste momento histórico, da condição humana).
Eis o que diz Dworkin em sua crítica a Hart (já citada “La Decisión Judicial, p. 55): “... lá consagración positiva de los principios no es un requisito para su aplicación”, ... “la validez de estos principios radica justamente en sua aceptación en la práctica juridica”.
Eduardo Garcia de Enterria (“Reflexiones sobre la Ley y los Principios Generales del Derecho”, ed. Cuadernos Civitas, 1984, Madrid, p. 52/53), após “recordar que el Derecho excede necessariamente de la ley”, afirma que existem “principios supralegales”.
Bonavides (loc. cit., p. 283), ao escrever sobre a proporcionalidade, diz ser ele “princípio não-escrito, cuja observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto pertence à natureza e essência mesmo do Estado de Direito”. Diria mais: a proporcionalidade é regra além do Estado de Direito: é norma de vida – adequação entre meio e fim!
Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz (“A Concessão de Medida Liminar em Processo Cautelar e o Princípio Constitucional da Proporcionalidade”, Rev. Forense, 1992, vol. 318, p. 105) cita Canotilho: “os princípios beneficiam-se de uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito”.
Leoni (loc. cit.) traz a experiência alemã onde princípio (no caso que Leoni debate, o da “proporcionalidade”) “é reconhecido como norma constitucional não escrita” (p. 364), e afirma que eles “não precisam necessariamente estar previstos em lei”. Cita, na mesma linha, Nelson Nery Júnior: “não necessitam estar previstos expressamente em normas legais, para que se lhe empreste validade e eficácia” (p. 369).
Retomo René David (ob. cit., p. 138) que refere a decisões da Corte Constitucional alemã no sentido de que: (a) o direito constitucional não se limita à Constituição, mas alcança “certos princípios gerais que o legislador não concretiza numa regra positiva”; (b) existe “um direito suprapositivo que vincula o próprio legislador constituinte”; e (c) a idéia que o constituinte pode tudo fazer “significaria um retorno a um positivismo ultrapassado” (p. 138).
Neste quadro – núcleo do sistema, logo “indiscutíveis e indisponíveis, como patrimônio da civilização” (Winfried Hassemer, “Segurança Pública no Estado de Direito’, Ver. Ajuris, 62, p. 162), com valor além do ápice piramidal kelseniano – fica patente sua importância como instrumental à superação da legalidade rasteira.
Para Bonavides (ao debater a proporcionalidade), com ele “os juizes corrigem o defeito da lei”, bem como superam as “insuficiências legislativas” (p. 278); cria “ascendência do juiz-executor da justiça material – sobre o legislador”, mesmo porque o legislador “deixou de mover-se com a inteira liberdade do passado” e o juiz “atua por um certo prisma em espaço mais livre” (p. 282).
O constitucionalista de vanguarda Luis Roberto Barroso (“Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Constitucional”, Rev. Forense, p. 336/70) cita San Tiago Dantas: a agressão aos princípios “produz sensação íntima do arbitrário, traduzida na idéia de lei injusta”.
E Dworkin fala que eles, embora funcionem diferente das regras “son igualmente obligatorios, en tanto deben ser temidos en cuenta por cualquier juez o intérprete en los casos en que son pertinentes” (“La Decisión Judicial, p. 36).
Um exemplo que quase todos os estudiosos do tema citam – aliás, de todo esclarecedor – é decisão do S.T.J., de 1994, que entendeu que agride ao princípio da “razoabilidade e caracteriza desvio ético jurídico a norma que concede a servidor inativo a gratificação de férias atribuída aos servidores em atividade” (Leoni, loc. Cit., p. 376): a superação do irracional deu-se via princípio não-positivado!
II - (d) E sua aplicação?
Ainda é restrita. Muito menor do que o esperado em busca de dar racionalidade (leia-se, justiça) à ordem (im)positiva.
É que – ao meu sentir – nós, operadores jurídicos, enquanto regra, somos positivistas-legalistas. Trabalhamos com a hipótese subsunçora da lei ao fato.
Parece-me que o alto grau de abstração, próprio dos princípios, gera pânico: carrega falsa idéia de insegurança. É que nosso senso comum é forjado à aplicação da norma visível que exige mínimo – às vezes nenhum – esforço intelectual.
Não somos “programados” para abstração – exige criação e não mera repetição do saber manualesco. Ao abstrair, torna-se impossível encontrar modelo já fabricado: somos forçados ao novo.
Não logramos, pois, descobrir o invisível que está por detrás da realidade aparente, como ensina Michel Mialle (“Uma Introdução Crítica ao Direito”, ed. Moraes, Lisboa, 1ª ed., p. 18), e tudo fica – cansativamente – como está: a nossa empolada retórica é mesmice espetacular!
MAS E A LEI, ENTÃO, PARA QUE(M) SERVE?
Se é certo que o princípio da legalidade está em declínio e se busca sua superação via princípios gerais de direito, pertinente questionar: qual, então, sua utilidade?
Em verdade, o que se tem dito – e procurado comprovar – é que a lei perdeu o cunho de dogma, verdade absoluta, inquestionável, deixou de ser a fonte única do direito e com importância inferior aos princípios: categoria superior.
Todavia, a lei – escrita ou não – é indispensável à vida social (o homem só é homem porque existe o outro). Não se vislumbra possibilidade de respeito a si e ao outro sem lei.
A lei – desde meu ponto de vista – diz necessariamente com limite. É, sempre e sempre (eticamente considerada) sua própria razão de ser: limite ao poder desmesurado.
Em outras palavras: a lei é limite à dominação do mais forte.
Num primeiro momento, ela é limite a mim mesmo, ou seja, é limite interno ao próprio indivíduo.
Há precioso trabalho de Carlos Affonso Pereira de Souza e Patrícia Regina Pinheiro Sampaio (“O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional”) publicado na Revista Forense, vol. 350, p. 29 e seguintes, onde a partir de Freud “tudo se explica”:
“...entende o pai da psicanálise atuar a lei como forma de repressão ao poder desmesurado, ou seja, oferecendo ao indivíduo na esfera do inconsciente a proteção de uma figura paterna. Considerando a lei como um pai substituto...”
E o “pai”, diz o psicanalista Mario Corso (Caderno de Cultura, jornal Zero Hora, 11.11.2000, p. 7), é aquele que tem a “função de separar mãe e bebê” (“mãe” enquanto “lugar de origem”). Ao lograr a “separação”, o bebê se encontra enquanto individualidade e reconhece a existência do outro, enquanto outro.
Pois bem. Na fantasia, tenho poder desmesurado, espetacular, destruidor, logo necessito um limite a este poder, o qual (limite) me é dado pela “figura paterna”: esta é a lei.
Aliás, sabemos todos que a delinqüência (aqui no sentido amplo, não no mero positivado) diz com a ausência de limite: a destruição do outro ou o outro como sem significado – extensão do um. E a perda do limite internalizado faz com que se o busque no pai-Estado-prisão.
Num segundo momento, a lei diz com limite ao outro frente a mim. É a proteção que o “eu” tem que o outro não me “destruirá”. É a proteção que o pai-lei me assegura: “vou ser agredido? O ‘pai’ vai me socorrer”.
O poder desmesurado do outro é contido: se ele, por si-mesmo, não me respeita, a lei deverá “impor” a condição de civilidade.
Num terceiro momento, a lei diz com limite ao soberano: a contenção do poder do próprio Leviatã. Em outras palavras, o poder do pai-Estado deve ser limitado. Ele, pai-Estado, não tem direito ao poder sem limite: o legislador não pode fazer tudo o que quer – aliás, é o que se tratou anteriormente ao se buscar conter a legalidade abusiva através dos princípios gerais do direito.
Assim, como limite ao poder desmesurado – meu, do outro, do Estado – a lei é absolutamente indispensável como condição de humanidade. Talvez por isso Ferrajoli entenda que sequer “ninguna mayoria, ni siquiera por unanimidad, puede legitimamente decidir la violación de un derecho social” (“Derechos y Garantias”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 24).
Em definitivo: a “lei” deve “me proteger” mesmo contra a unanimidade!
É bem verdade que a função da lei, eticamente considerada, desde muito tem sido desvirtuada: muitas vezes, deixa de ser limite ao poder desmesurado, para ela mesma ser fonte de opressão – de limite à dominação se transforma em instrumento dominador.
Enterria (loc. cit., p. 27/28) bem esclarece:
“La sociedad actual no las comparte ya, y, mucho más, ocurre todavia que, como un resultado de la experiencia histórica inmediata, há comenzado a ver en la ley algo en si mismo neutro, que no sólo no incluye en su seno necessariamente la justicia y la libertad, sino que com la misma naturalidad puede convertirse en la más fuerte e formidable “amenaza para la libertad”, incluso en una “forma de organización de lo antijuridico”, o hasta en un instrumento para “la perversión del orden juridico”.
Alberto Binder (“Entre la Democracia y la Exclusión: la lucha por la legalidad en una sociedad desigual”, palestra no “II Taller sobre la Red Latinoamericana de Magistrados y Funcionarios Judiciales por la Democratización de la Justicia) vai mais longe:
“No podemos pretender que los distintos sectores sociales se entusiasmen y utilizen la legalidade si ella es sinónimo de trampa, laberinto, falsedad, engaño, sutileza fútil, tibieza, farsa y privilegio encubierto”.
Sobre a lei enquanto instrumento de dominação, e especial na sociedade capitalista, ouso remeter o leitor a texto que produzi “A Lei. O Juiz. O Justo”, publicado no meu “Magistratura e Direito Alternativo”, ed. Luam, 5ª ed., p. 24/48.
A rebeldia primeira contra a lei que perde sua finalidade – melhor dito, que tem a finalidade desvirtuada – vem dos jusnaturalistas.
Em texto publicado na Revista de Investigaciones Juridicas, nº 24, p. 413/426, ano 2000, de Aguascalientes, “Democracia y Ley Natural desde el iusnaturalismo católico de Suárez”, o precioso jusfilósofo mexicano Jesús Antonio de la Torre Rangel, recolhe de Francisco Suárez a lição seguinte: “una ley injusta no es ley”...”hablando en sentido proprio y absoluto, solamente puede llamarse ley, la que es medida de la rectitud sin más, y, consiquientemente, sólo la que es regla recta y honesta”.
E deve ser recusada obediência: “1º. Si se trata de una ley injusta; 2º. Si aun no siendo injusta, es demasiado gravosa; y 3º. Si de hecho la mayor parte del pueblo no observa la ley”.
Mas, então, para que(m) serve a lei?
A lei é limite ao poder desmesurado – leia-se, limite à dominação. Então, a lei – eticamente considerada – é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação.
Sua importância é, pois, espetacular: combate à opressão!
E, por conseqüência, o juiz enquanto “aplicador” deste tipo de legalidade é também protetiva ao débil.
Em outro texto, Jesús Antonio (“Critérios filosóficos-jurídicos para Administrar Justicia de Alonso de la Vera Cruz”, Caleidoscópio, Univ. Autonoma de Aguascalientes, México, nº 1, p. 126) cita Porfírio Miranda:
“cuando en la historia se ideó la función de un juez.... fue exclusivamente para ayudar a quienes por ser débiles no pueden defenderse; los otros no lo necessitam”.
Aliás, é até disposição da Bíblia:
“Falem a favor daqueles que não podem se defender. Proteja os direitos de todos os desamparados. Fale por eles e seja um juiz justo. Proteja o direito dos pobres e necessitados” (Pr. 31.8.9).
A crítica – sempre agudizada – de Ferrajoli também se faz presente (quanto ao papel do juiz):
“...puesto que en ningún sistema el juez es una máquina automática, concebirlo como tal significa hacer de el una máquina ciega, presa de la estupidez o, peor, de los interesses y los condicionamientos de poder más o menos ocultos y, en todo caso, favorecer su irresponsabilidad política y moral” (“Derecho y Razón, p. 175).
E em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El contexto extraprocesal”, p. 46):
“Sobre todo la conciencia profesional del juez como tutor y garante, frente a los poderes tanto públicos como privados, de los derechos fundamentales de los ciudadanos”.
No que refere a lei enquanto fenômeno de proteção ao mais fraco, o próprio Ferrajoli em três momentos defende a tese:
“O Estado Constitucional de Direito Hoje: o Modelo e a sua Discrepância com a Realidade”, palestra apresentada em 1994, seminário dos Juízes para Democracia espanhola: “... na consciência de que os direitos fundamentais são sempre leis do mais fraco contra a lei do mais forte...”
Seu livro mais específico: “Derecho Y Garantías – La Ley del más Débil”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 54: “Los derechos fundamentales se afirman siempre como leyes del más débil en alternativa a la ley del más fuerte que regia y regiría en sua ausencia”.
no clássico “Derecho y Razón”, p. 335, neste momento na vertente do direito penal que se analisará no capítulo seguinte.
Ressalto, ao final, que lei do mais débil, lei do mais fraco, pode ser sintetizada como lei do pobre porque “el pobre, como expresión de lo humano, por la violación sistemática de su esfera vital dará siempre la pauta de esta búsqueda histórica de la vigencia real de los derechos humanos, la justicia y el bien común” (David Sánchez Rubio, “Filosofia, Derecho y Liberación en América Latina, Desclér, Bilbao, 1999, p. 183).
Mas pobre enquanto categoria sociológica. É que “la categoria pobre es amplia y abarca todo tipo de pobreza, desde la miseria del hombre hasta la falta de justicia y derechos, la desigualdad, la opresión, la falta de libertad, el compromiso de la fe por la degradación del hombre” (José de Souza Martins, citado por Jesús Antonio de la Torre Rangel, “Sociologia Juridica y Uso Alternativo del Derecho”, ed. Inst. Cultural de Aguascalientes, 1997, México, p. 37).
E A LEI PENAL?
Se a lei é sempre a lei do mais fraco, o arsenal interpretativo do direito penal tem que resolver a primeira questão básica: quem é, aqui, o débil (a partir de cuja “totalidade” olhar-se-á o fenômeno penal, ou seja, desde onde serão apreciadas as normas)?
Salo de Carvalho (“Descodificação Penal e Reserva do Código, publicação ITEC) bem esclarece: “... o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”.
Ferrajoli, vez mais, ensina:
“Es más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en el delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios com el”
...
“Bajo ambos aspectos la ley penal se justifica en tanto que ley del más débil, orientada a la tutela de sus derechos contra la violencia arbitraria del más fuerte” (“Derecho y Razón”, p. 335).
Em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El Contexto extraprocesal”) ele é mais incisivo:
“En la tradición liberal-democrática, el derecho y el proceso penal son instrumentos o condiciones de “democracia” sólo en la medida en que sirvam para minimizar la violencia punitiva del Estado, y constituyan por tanto – antes que un conjunto de preceptos destinados a los ciudadanos y de limitaciones impuestas a su libertas – un conjunto de preceptos destinados a los poderes públicos y de limitaciones impuestas a su potestad punitiva: en otras palabras, un conjunto de garantias fundamentales del ciudadano frente al arbítrio y el abuso de la fuerza por parte del Estado”.
Na mesma linha, ou seja, o penal enquanto garantia do cidadão-réu contra o perseguidor, veja-se o brilhante livro de Adauto Suannes, “Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Legal”, RT, 1999, p. 128/154.
Supera-se, assim, a questão básica: o débil (ou o pobre, enquanto categoria sociológica) no direito penal é o acusado – deve ser protegido, pois (exclui-se a ótica oriunda da “lei e da ordem” que o vê como instrumento da vítima, ou dos “homens bons”, na busca desesperada da punição).
Como, então, olhar a lei penal desde o ponto de vista do mais fraco?
Em dúplice diretiva:
na direção punitiva/perseguidora, a interpretação – aliás, já o disse em outro local (“Aplicação da Pena e Garantismo”, em parceria com Salo de Carvalho, ed. Lumen Juris, 2001, p. 124) – deve ter força centrípeta: a imantação é para o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível ao acusado, diria Ferrajoli).
Neste momento, a lei – garantia espetacular ao cidadão, tanto que o penal segue o princípio da legalidade – protege o cidadão-réu.
Assim, tudo vai em direção ao “núcleo duro” (diria Hart, “La Decisión Judicial”, p. 33) do tipo. É que as normas penais – agora diria Dworkin (“La Decisión Judicial”, p. 36) – “son reglas precisas”.
Eis o momento precioso da lei: em momento algum ela pode ser ultrapassada em prejuízo do débil. Aqui, aplicar a lei é como diria David Sánchez Rubio (loc. cit., p. 242) “una actuación revolucionária”.
Importante – desde meu ponto de vista – se tenha claro a força centrípeta quando se persegue o cidadão (o “príncipe” no penal) frente a constante violação da legalidade (repito: aqui protetiva, logo deve ser obedecida) quando se olha a lei como instrumento de dominação.
Um exemplo tenho como esclarecedor: o artigo 157, § 2º, I, do Código Penal Brasileiro, majora a pena de um terço até a metade quando o agente, à violência ou à ameaça, faz “emprego de arma” (art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa... § 2º. A pena aumenta-se de um terço até a metade: I. – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma).
A interpretação na direção ao “núcleo duro”, com vistas a “reglas precisas”, ou seja, na proteção do débil – a “centrípeta” porque persegue o cidadão –, arma só pode ser instrumento destinado ao ataque, a fazer mal, a causar dano físico.
No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nega vigência a lei ao “alargar” a interpretação, agredindo, assim, a proteção ao cidadão, ao sumular o entendimento que, para fins de majoração, entende-se que revólver de brinquedo é arma.
O Terceiro Grupo Criminal do Rio Grande do Sul (E. I. 70 00/653 666), através de voto do precioso Des. Aramis Nassif, com argúcia, ataca o entendimento sumulado. O voto de Aramis vai transcrito:
“A arma de brinquedo não pode ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo e. STJ. É que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal exasperante através de decisão judicial. Contrário sensu vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...). Mas, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Por maioria, acolheram os embargos.”
“... Sr. Presidente. 2. Acolho os embargos no sentido de reconhecer prevalecente o voto vencido. E a razão é a obviedade conceitual, material, visual, palpável de que revólver de brinquedo é brinquedo e arma é arma.
Ou não?
Se não, certamente que vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...)
Não existe mais brinquedo.
Mas eu tinha certeza que aquilo que eu tinha era um brinquedo (eu só tinha cinco anos de idade e sabia disto!)
Ou será que meus pais dar-me-iam uma arma?
Será que era uma arma e eu não percebo? Mas não seria uma brutal irresponsabilidade?
Mas eles eram tão cuidadosos e, por isto, não acredito que eles deixariam eu brincar com uma arma...
Bem, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Aliás, meu pai não deixava eu tocar no revólver verdadeiro que mantinha distante de meu alcance. Porque era uma arma, dizia ele. Será que ele estava me enganando e o que ele guardava com tanto cuidado era um brinquedo?
Não acredito, por isto, que a jurisprudência brasileira tenha o poder mágico de transformar um brinquedo em arma.
Afinal, a norma (art. 157, I, CP) não fala em emprego de arma? Não achei no meu Código expressão ou termo como emprego de brinquedo que autorizasse tornar a sanção mais severa. Não achei...
Como ampliar conceitos para prejudicar o réu?
A arma de brinquedo não pode, pois, ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo Eg. STJ. É, como disse acima, que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal.
Mas é eficaz para caracterizar o roubo. É que a capacidade intimidatória subjuga a vítima, impedindo que possa defender o bem jurídico atacado pela ação criminosa. Estou convencido que, pelo efeito intimidatório produzido na pessoa atacada, o emprego do simulacro pode caracterizar a grave ameaça, esgotada no plano psicológico e, assim, erige em roubo a atividade delinqüencial.
Todavia, vejo distância inalcançável entre este efeito e a majorante do artigo 157, § 2º, inciso I, do Código Penal, mesmo que, com tal convencimento, esteja contrariando a Súmula 174 do Eg. Superior Tribunal de Justiça. Acontece que, se é certo que arma de brinquedo desloca o modelo típico para o roubo, pelo arrasador efeito sobre a vítima, não pode ser conceituada, materialmente, como arma.
O espírito das majorantes é impor ao condenado um plus na sanção para o efeito de atender os princípios da necessidade e suficiência da pena. Assim, se o agente perpetra delito em circunstâncias que inflige à vítima especial sofrimento, físico ou mental, merece que sua pena seja exasperada.
Mas estou convencido de que, se presente a grave ameaça, jamais esteve presente a arma. Significa dizer que, de certo modo, o agente corre maiores riscos e a perspectiva de frustração do ato criminoso é muito maior se empregar um brinquedo como arma ante eventual reação da vítima ou de terceiros. Ele é, assim, pessoa menos perigosa do que aquele que, empregando arma verdadeira, gera, além da coação à vítima, sério risco à sua integridade física e, por tal, não pode sofrer as mesmas conseqüências penalizadoras.
Será que estive enganado por cinqüenta anos e o STJ, através de uma Súmula, veio revogar minha ignorância? Com a devida vênia, fico com a verdade de meus pais, pois eles eram responsáveis, sensíveis, humanos, enfim... Não estavam presos a delírios provocados pela fúria punitiva irracional que inspirou a sumulação. E para eles brinquedo era brinquedo, arma era arma...
O voto é no sentido de acolher os embargos e fazer prevalecer o voto vencido.
É o voto.”
Penso nada mais necessário dizer.
No entanto, quando para beneficiar o débil no direito penal entendo que a interpretação deve ter força centrífuga: dirigida para fora, na direção libertária.
Neste momento, ao contrário do que se fez o S.T.J. – arma de brinquedo como arma – o olhar interpretativo deve ser extensivo. Aqui os princípios gerais do direito são – como se viu no capítulo anterior – o instrumento hábil para combater injustiças, perseguições inócuas, excesso legislativo.
Salo escreve (local citado):
“Importante notar, contudo, que a exclusão das fontes materiais em matéria penal (v.g. analogia, costumes, jurisprudência, doutrina e direito penal comparado) diz tão-somente ao processo de interpretação criminalizadora e/ou penalizadora. Tal proposição não esgota toda esfera penal ao pressuposto da legalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo as fontes materiais das possibilidades judiciais. Sua negação é restrita aos processos de inclusão, não aos de exclusão da pena ou do delito (v.g., causas supra-legais de exclusão de tipicidade, ilicitude e culpabilidade).
Aliás, Alberto Silva Franco bem apanhou o papel do juiz neste espetáculo (“O Compromisso do Juiz Criminal no Estado Democrático”, Justiça e Democracia, nº 3, p. 270/271):
“Juiz penal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do estado leviatânico”
...
“é em resumo, ser o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo. E seria melhor que nem fosse juiz, se fosse para não perceber e não cumprir essa missão”.
Então, lei para que(m)? Para proteção do pobre (enquanto categoria sociológica) frente ao poder desmesurado.
Preciso acreditar nesta máxima..."
Hoje,embora distante, posso chamá-lo amigo e como humilde discípula, depois de tanto repassar o texto a seguir aos meus alunos retiro-o do armário empoeirado do meu HD e o posto neste blog à disposição daqueles apaixonados pela Justiça, como eu, que aqui um dia cheguem.
Tenho plena convicção que a luta pelo direito não possui neutralidade, mesmo quando nos colocamos como neutros, assumimos uma posição: a de cima do muro, a nossa, ou a do poder instituído. Prefiro o lado da Justiça.
Deixo o texto na íntegra para vocês.
"LEI, PARA QUE(M)?
Amílton Bueno de Carvalho, Desembargador no Rio Grande do Sul
SUMÁRIO: I. Introdução; II. Crise da Legalidade – sua possível superação: os princípios; II. (a) Mas o que são princípios? II. (b) E suas características? II. (c) De onde vêm? II. (d) E sua aplicação? III. Mas e a lei, então, para que(m) serve? IV. E a lei penal?h
INTRODUÇÃO
O presente texto foi instigado pelo precioso amigo James Tubenchlak e vai em homenagem a ele: sua contribuição para o avanço da visão crítica no direito brasileiro marca este tempo em que se busca superar o olhar (e atuar) conservador (às vezes, reacionário) que alcança o senso comum dos operadores jurídicos.
A preocupação central de James – ao menos, a mim manifestada – está em que, principalmente no campo penal, a legalidade tem sido negada sistematicamente em prejuízo dos acusados. Mesmo entre os positivistas declarados há certa hipocrisia – consciente ou não – ao violar a base teórica que sustentam (Lyra Fº, aliás, já dizia: “a dominação é hipócrita” – “O que é Direito”, ed. Brasiliense, 4ª ed., 1984, p. 118).
Ao aceitar o desafio, procuro, neste trabalho, discutir (a) a crise da legalidade e sua possível superação, (b) a importância da lei e (c) quando se necessita da legalidade – em especial no campo penal.
Reitero o que tenho referido na quase totalidade dos meus textos: não tenho formação teórica agudizada, meu eventual saber emerge da atuação, por mais de duas décadas, como magistrado. Logo – e diferente não poderia deixar de ser –, sou marcado por este local de fala.
CRISE DA LEGALIDADE – SUA POSSÍVEL SUPERAÇÃO: OS PRINCÍPIOS
Cada vez mais fica claro entre os pensadores do direito que o princípio da legalidade está em profunda crise: a lei não consegue dar respostas suportáveis às situações que ela busca prever – seja pela inflação legislativa, pelo seu mau uso (e criação), pela impossibilidade lógica de alcançar a realidade que se altera brusca e incontrolavelmente, pela inconfiabilidade no legislador.
Germana de Oliveira Moraes (“Controle Jurisdicional da Administração Pública”, ed. Dialética, 1999) diz que:
“Como fruto da constante e renovada relação dialética entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ‘o direito por regras’ do Estado de Direito cedeu lugar, no constitucionalismo contemporâneo, ao ‘direito por princípios’” (p.19).
E, em momento seguinte, acompanha Paulo Bonavides;
“...com o declínio da primeira concepção do Estado de Direito, vinculado doutrinariamente ao princípio da legalidade, já superado pelo princípio da constitucionalidade, sob a égide do segundo Estado de Direito, no qual houve o deslocamento do centro da gravidade da ordem jurídica para o respeito aos direitos fundamentais” (p. 77).
O próprio Bonavides (“O Princípio Constitucional da Proporcionalidade e a Proteção dos Direitos Fundamentais” – Rev. da Fac. de Direito da UFMG, vol. 34, 1994, p. 281) vai um pouco mais longe ao entender que o “princípio da legalidade, com apogeu no direito positivo da Constituição de Weimar” está em “declínio, ou de todo ultrapassada”.
Elimar Szaniawski (“Considerações sobre o Princípio da Proporcionalidade” – Rev. dos Mestrandos em Dir. Econ. da UFBA, 1999, p. 512) segue na mesma linha:
“Na realidade, ocorre que o legislador moderno não atua mais dentro de um espaço de absoluta liberdade, tal qual agia ao tempo em que predominava o princípio da legalidade. Sob a égide do princípio da constitucionalidade, encontramos mecanismos que têm por fim limitar a liberdade do legislador, conquista do atual Estado de Direito”.
René David (“Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo”, p. 137) aponta que a “insuficiência da ordem legislativa”, “deixou bem nítido que o direito francês não se confundia com a lei”. Willis Santiago Guerra Filho (“Princípios da Isonomia e da Proporcionalidade como Garantias Fundamentais”, Ciência Jurídica, 1996, vol. 68, p. 297) entende que se está frente a “uma fase ‘pós-positivista’, com a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo”.
De logo – para além do vislumbrar da crise de legalidade rasteira, com a perda do caráter absoluto da lei – vê-se das citações anteriores que já se aponta para a forma de superar a legalidade insuficiente à previsão dos casos ou à busca de maior justiça aos resultados da aplicação: os princípios gerais do direito.
Em outro local, já me defini (“Direito Alternativo em Movimento”, ed. Luam, 4ª ed., p. 78):
“Outrossim, como a legalidade fria, muitas e muitas vezes, é entrave a decisões democráticas, busca-se ter o direito em construção, abandonando-se a visão de se o ter como dado. Ou seja, ousa-se criar ao invés de buscar apenas revelar o direito emergente do Estado.
“Então o limite passou a ser outro, ultrapassando a legalidade estreita, para alcançar os princípios gerais do direito do mundo civilizado (aqui se incluindo os direitos humanos).
“E estes princípios são tidos como históricos, construídos pela sociedade civil na sua caminhada em busca da utópica vida em abundância para todos. Estes princípios servem de norte interpretativo de todo o fenômeno jurídico e dão conteúdo racional ao ato decisório”.
II - (a) Mas o que são princípios?
Parece-me que a definição de Dworkin alcança bem o fenômeno: “uma norma que é mister observar, não porque torna possível ou assegura uma situação econômica, política ou social julgada conveniente, mas por ser um imperativo de justiça, de honestidade ou de alguma outra dimensão moral” (Francisco Balon Aguirre, “Sistema Jurídico Aguaruna e Positivismo”, in Qual Direito? Ed. Jajup, p. 19/20).
Todavia, vários são os olhares – em busca de conceituação – dos princípios:
Jesús Leguina Villa – cit. por Germana, op. cit., p. 19 – entende que eles “expressam e articulam os valores centrais, as representações jurídicas gerais e as opções básicas de cada sistema jurídico”. E Germana (p. 20) cita também Bonavides, são “a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder, e são compreendidos, equiparados e até confundidos com os valores”.
Elimar, no texto antes referido (p. 506/507), após citar Bandeira de Mello – que o tem como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele” – refere que os autores designaram-o como “as ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas”.
San Tiago Dantas (citado por Leoni Lopes de Oliveira, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Material”, Doutrina 2000, publicação Instituto de Direito, p. 369) entende que são “como uma síntese das normas dentro de certos limites históricos”.
Eros Roberto Grau (“Licitação sem Objeto”, Rev. Trim. de Dir. Público, v. 10, p. 95), criativo como sempre, entende que se constituem em direito pressuposto: a base do direito posto.
Vê-se, pois, que princípios são os valores centrais do espaço jurídico (tido como “construção histórica” do homem em busca da dignidade cada vez mais humana, logo, embora absolutos em determinado momento, não são “eternos”, nem “dados”).
São o pano de fundo a orientar a criação das normas e a própria exegese. Deles, como diz Elimar, são irradiadas e imantadas as normas: de onde partem e onde devem chegar, uma espécie de efeito “bumerangue”.
Os princípios são o momento mais importante (diria, até sublime) de todo o ordenamento porque “imperativo de justiça”, ou seja, fim de todo o direito – positivado ou não.
II - (b) E suas características?
Willis – op. cit. – assim esclarece:
distingue-se das regras porque prescreve um valor, enquanto estas descrevem “uma hipótese fática e a previsão da conseqüência jurídica”;
apresentam, ao contrário das regras, maior abstração; não se reportam “a nenhuma espécie de situação fática” (a ordem jurídica é concebida por normas com menor ou maior abstração, desde a mais concreta – sentença – até se chegar aos princípios);
embora as regras possam entrar em rota de colisão, ao ponto de se chocarem, com os princípios tudo é diferente: “não entram em choque, são compatíveis uns com os outros”, acomodam-se.
No meu entender, quando se dá choque entre norma e princípio, vigora este porque é o informador daquela (aliás, neste momento estamos autorizados a negar não só a validade, mas até a vigência – no viés ferrajoliano – das leis).
Hart, no “Postscriptum” em debate com Dworkin (“La Decisión Judicial” – el debate Hart-Dworkin”, Siglo del Hombre Editora, estudo de César Rodriguez, 1997, Bogotá, p. 119) tem quase que idêntico entendimento:
“El primero es una cuéstion de grado: los principios, en relación a las reglas, son generales o no especificos, en el sentido en que a menudo lo que se consideraria como un número determinado de reglas puede ser mostrado como ejemplificación o instancia de un principio único. El segundo rasgo seria que los principios, por cuanto se referien más o menos explicitamente a algún propósito, meta, facultad o valor, son considerados, desde cierto punto de vista, como algo que resulta deseable preservar o ser objeto de adhesión y que, por ende, no sólo suministran una explicación o racionalidad de las reglas que los ejemplifican, sino que al menos contribuyen a sua justificación”.
O próprio César (loc. cit., p. 50/52), forte em Dworkin, diz que as regras, ao contrário dos princípios, “operan dentro de un esquema de todo o nada”, por isso, prossegue, as “reglas son conclusivas y los principios son no-conclusivos”.
II - (c) De onde vêm?
A maioria dos doutrinadores entende que os princípios têm como “ambiência natural o texto constitucional” (Willis, loc. cit., p. 299).
Ou seja, a Constituição – como síntese do ordenamento jurídico – carregaria, implícita ou explicitamente, a principiologia (o pano de fundo, a reserva ético-valorativa, o centro irradiador-imantador) que orienta o sistema.
Assim, necessária a positivação – ao menos implícita – dos princípios.
Sigo linha diversa. Tenho que os princípios – enquanto reserva ética, repito – não necessitam, à sua aplicação/existência, estar positivados – na Constituição ou em outra disposição legal. Estão acima e para além de qualquer positivação.
Os princípios – desde meu ponto de vista – são – como conquistas da civilização – inclusive orientação e limite ao próprio Poder Constituinte: é um núcleo duro da cidadania que só pode ser relegado (repito, historicamente considerado) com a atuação da própria humanidade ao destruir princípios antigos e na construção de novos (o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é “pressuposto” – para seguir Eros –, neste momento histórico, da condição humana).
Eis o que diz Dworkin em sua crítica a Hart (já citada “La Decisión Judicial, p. 55): “... lá consagración positiva de los principios no es un requisito para su aplicación”, ... “la validez de estos principios radica justamente en sua aceptación en la práctica juridica”.
Eduardo Garcia de Enterria (“Reflexiones sobre la Ley y los Principios Generales del Derecho”, ed. Cuadernos Civitas, 1984, Madrid, p. 52/53), após “recordar que el Derecho excede necessariamente de la ley”, afirma que existem “principios supralegales”.
Bonavides (loc. cit., p. 283), ao escrever sobre a proporcionalidade, diz ser ele “princípio não-escrito, cuja observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto pertence à natureza e essência mesmo do Estado de Direito”. Diria mais: a proporcionalidade é regra além do Estado de Direito: é norma de vida – adequação entre meio e fim!
Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz (“A Concessão de Medida Liminar em Processo Cautelar e o Princípio Constitucional da Proporcionalidade”, Rev. Forense, 1992, vol. 318, p. 105) cita Canotilho: “os princípios beneficiam-se de uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito”.
Leoni (loc. cit.) traz a experiência alemã onde princípio (no caso que Leoni debate, o da “proporcionalidade”) “é reconhecido como norma constitucional não escrita” (p. 364), e afirma que eles “não precisam necessariamente estar previstos em lei”. Cita, na mesma linha, Nelson Nery Júnior: “não necessitam estar previstos expressamente em normas legais, para que se lhe empreste validade e eficácia” (p. 369).
Retomo René David (ob. cit., p. 138) que refere a decisões da Corte Constitucional alemã no sentido de que: (a) o direito constitucional não se limita à Constituição, mas alcança “certos princípios gerais que o legislador não concretiza numa regra positiva”; (b) existe “um direito suprapositivo que vincula o próprio legislador constituinte”; e (c) a idéia que o constituinte pode tudo fazer “significaria um retorno a um positivismo ultrapassado” (p. 138).
Neste quadro – núcleo do sistema, logo “indiscutíveis e indisponíveis, como patrimônio da civilização” (Winfried Hassemer, “Segurança Pública no Estado de Direito’, Ver. Ajuris, 62, p. 162), com valor além do ápice piramidal kelseniano – fica patente sua importância como instrumental à superação da legalidade rasteira.
Para Bonavides (ao debater a proporcionalidade), com ele “os juizes corrigem o defeito da lei”, bem como superam as “insuficiências legislativas” (p. 278); cria “ascendência do juiz-executor da justiça material – sobre o legislador”, mesmo porque o legislador “deixou de mover-se com a inteira liberdade do passado” e o juiz “atua por um certo prisma em espaço mais livre” (p. 282).
O constitucionalista de vanguarda Luis Roberto Barroso (“Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Constitucional”, Rev. Forense, p. 336/70) cita San Tiago Dantas: a agressão aos princípios “produz sensação íntima do arbitrário, traduzida na idéia de lei injusta”.
E Dworkin fala que eles, embora funcionem diferente das regras “son igualmente obligatorios, en tanto deben ser temidos en cuenta por cualquier juez o intérprete en los casos en que son pertinentes” (“La Decisión Judicial, p. 36).
Um exemplo que quase todos os estudiosos do tema citam – aliás, de todo esclarecedor – é decisão do S.T.J., de 1994, que entendeu que agride ao princípio da “razoabilidade e caracteriza desvio ético jurídico a norma que concede a servidor inativo a gratificação de férias atribuída aos servidores em atividade” (Leoni, loc. Cit., p. 376): a superação do irracional deu-se via princípio não-positivado!
II - (d) E sua aplicação?
Ainda é restrita. Muito menor do que o esperado em busca de dar racionalidade (leia-se, justiça) à ordem (im)positiva.
É que – ao meu sentir – nós, operadores jurídicos, enquanto regra, somos positivistas-legalistas. Trabalhamos com a hipótese subsunçora da lei ao fato.
Parece-me que o alto grau de abstração, próprio dos princípios, gera pânico: carrega falsa idéia de insegurança. É que nosso senso comum é forjado à aplicação da norma visível que exige mínimo – às vezes nenhum – esforço intelectual.
Não somos “programados” para abstração – exige criação e não mera repetição do saber manualesco. Ao abstrair, torna-se impossível encontrar modelo já fabricado: somos forçados ao novo.
Não logramos, pois, descobrir o invisível que está por detrás da realidade aparente, como ensina Michel Mialle (“Uma Introdução Crítica ao Direito”, ed. Moraes, Lisboa, 1ª ed., p. 18), e tudo fica – cansativamente – como está: a nossa empolada retórica é mesmice espetacular!
MAS E A LEI, ENTÃO, PARA QUE(M) SERVE?
Se é certo que o princípio da legalidade está em declínio e se busca sua superação via princípios gerais de direito, pertinente questionar: qual, então, sua utilidade?
Em verdade, o que se tem dito – e procurado comprovar – é que a lei perdeu o cunho de dogma, verdade absoluta, inquestionável, deixou de ser a fonte única do direito e com importância inferior aos princípios: categoria superior.
Todavia, a lei – escrita ou não – é indispensável à vida social (o homem só é homem porque existe o outro). Não se vislumbra possibilidade de respeito a si e ao outro sem lei.
A lei – desde meu ponto de vista – diz necessariamente com limite. É, sempre e sempre (eticamente considerada) sua própria razão de ser: limite ao poder desmesurado.
Em outras palavras: a lei é limite à dominação do mais forte.
Num primeiro momento, ela é limite a mim mesmo, ou seja, é limite interno ao próprio indivíduo.
Há precioso trabalho de Carlos Affonso Pereira de Souza e Patrícia Regina Pinheiro Sampaio (“O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional”) publicado na Revista Forense, vol. 350, p. 29 e seguintes, onde a partir de Freud “tudo se explica”:
“...entende o pai da psicanálise atuar a lei como forma de repressão ao poder desmesurado, ou seja, oferecendo ao indivíduo na esfera do inconsciente a proteção de uma figura paterna. Considerando a lei como um pai substituto...”
E o “pai”, diz o psicanalista Mario Corso (Caderno de Cultura, jornal Zero Hora, 11.11.2000, p. 7), é aquele que tem a “função de separar mãe e bebê” (“mãe” enquanto “lugar de origem”). Ao lograr a “separação”, o bebê se encontra enquanto individualidade e reconhece a existência do outro, enquanto outro.
Pois bem. Na fantasia, tenho poder desmesurado, espetacular, destruidor, logo necessito um limite a este poder, o qual (limite) me é dado pela “figura paterna”: esta é a lei.
Aliás, sabemos todos que a delinqüência (aqui no sentido amplo, não no mero positivado) diz com a ausência de limite: a destruição do outro ou o outro como sem significado – extensão do um. E a perda do limite internalizado faz com que se o busque no pai-Estado-prisão.
Num segundo momento, a lei diz com limite ao outro frente a mim. É a proteção que o “eu” tem que o outro não me “destruirá”. É a proteção que o pai-lei me assegura: “vou ser agredido? O ‘pai’ vai me socorrer”.
O poder desmesurado do outro é contido: se ele, por si-mesmo, não me respeita, a lei deverá “impor” a condição de civilidade.
Num terceiro momento, a lei diz com limite ao soberano: a contenção do poder do próprio Leviatã. Em outras palavras, o poder do pai-Estado deve ser limitado. Ele, pai-Estado, não tem direito ao poder sem limite: o legislador não pode fazer tudo o que quer – aliás, é o que se tratou anteriormente ao se buscar conter a legalidade abusiva através dos princípios gerais do direito.
Assim, como limite ao poder desmesurado – meu, do outro, do Estado – a lei é absolutamente indispensável como condição de humanidade. Talvez por isso Ferrajoli entenda que sequer “ninguna mayoria, ni siquiera por unanimidad, puede legitimamente decidir la violación de un derecho social” (“Derechos y Garantias”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 24).
Em definitivo: a “lei” deve “me proteger” mesmo contra a unanimidade!
É bem verdade que a função da lei, eticamente considerada, desde muito tem sido desvirtuada: muitas vezes, deixa de ser limite ao poder desmesurado, para ela mesma ser fonte de opressão – de limite à dominação se transforma em instrumento dominador.
Enterria (loc. cit., p. 27/28) bem esclarece:
“La sociedad actual no las comparte ya, y, mucho más, ocurre todavia que, como un resultado de la experiencia histórica inmediata, há comenzado a ver en la ley algo en si mismo neutro, que no sólo no incluye en su seno necessariamente la justicia y la libertad, sino que com la misma naturalidad puede convertirse en la más fuerte e formidable “amenaza para la libertad”, incluso en una “forma de organización de lo antijuridico”, o hasta en un instrumento para “la perversión del orden juridico”.
Alberto Binder (“Entre la Democracia y la Exclusión: la lucha por la legalidad en una sociedad desigual”, palestra no “II Taller sobre la Red Latinoamericana de Magistrados y Funcionarios Judiciales por la Democratización de la Justicia) vai mais longe:
“No podemos pretender que los distintos sectores sociales se entusiasmen y utilizen la legalidade si ella es sinónimo de trampa, laberinto, falsedad, engaño, sutileza fútil, tibieza, farsa y privilegio encubierto”.
Sobre a lei enquanto instrumento de dominação, e especial na sociedade capitalista, ouso remeter o leitor a texto que produzi “A Lei. O Juiz. O Justo”, publicado no meu “Magistratura e Direito Alternativo”, ed. Luam, 5ª ed., p. 24/48.
A rebeldia primeira contra a lei que perde sua finalidade – melhor dito, que tem a finalidade desvirtuada – vem dos jusnaturalistas.
Em texto publicado na Revista de Investigaciones Juridicas, nº 24, p. 413/426, ano 2000, de Aguascalientes, “Democracia y Ley Natural desde el iusnaturalismo católico de Suárez”, o precioso jusfilósofo mexicano Jesús Antonio de la Torre Rangel, recolhe de Francisco Suárez a lição seguinte: “una ley injusta no es ley”...”hablando en sentido proprio y absoluto, solamente puede llamarse ley, la que es medida de la rectitud sin más, y, consiquientemente, sólo la que es regla recta y honesta”.
E deve ser recusada obediência: “1º. Si se trata de una ley injusta; 2º. Si aun no siendo injusta, es demasiado gravosa; y 3º. Si de hecho la mayor parte del pueblo no observa la ley”.
Mas, então, para que(m) serve a lei?
A lei é limite ao poder desmesurado – leia-se, limite à dominação. Então, a lei – eticamente considerada – é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação.
Sua importância é, pois, espetacular: combate à opressão!
E, por conseqüência, o juiz enquanto “aplicador” deste tipo de legalidade é também protetiva ao débil.
Em outro texto, Jesús Antonio (“Critérios filosóficos-jurídicos para Administrar Justicia de Alonso de la Vera Cruz”, Caleidoscópio, Univ. Autonoma de Aguascalientes, México, nº 1, p. 126) cita Porfírio Miranda:
“cuando en la historia se ideó la función de un juez.... fue exclusivamente para ayudar a quienes por ser débiles no pueden defenderse; los otros no lo necessitam”.
Aliás, é até disposição da Bíblia:
“Falem a favor daqueles que não podem se defender. Proteja os direitos de todos os desamparados. Fale por eles e seja um juiz justo. Proteja o direito dos pobres e necessitados” (Pr. 31.8.9).
A crítica – sempre agudizada – de Ferrajoli também se faz presente (quanto ao papel do juiz):
“...puesto que en ningún sistema el juez es una máquina automática, concebirlo como tal significa hacer de el una máquina ciega, presa de la estupidez o, peor, de los interesses y los condicionamientos de poder más o menos ocultos y, en todo caso, favorecer su irresponsabilidad política y moral” (“Derecho y Razón, p. 175).
E em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El contexto extraprocesal”, p. 46):
“Sobre todo la conciencia profesional del juez como tutor y garante, frente a los poderes tanto públicos como privados, de los derechos fundamentales de los ciudadanos”.
No que refere a lei enquanto fenômeno de proteção ao mais fraco, o próprio Ferrajoli em três momentos defende a tese:
“O Estado Constitucional de Direito Hoje: o Modelo e a sua Discrepância com a Realidade”, palestra apresentada em 1994, seminário dos Juízes para Democracia espanhola: “... na consciência de que os direitos fundamentais são sempre leis do mais fraco contra a lei do mais forte...”
Seu livro mais específico: “Derecho Y Garantías – La Ley del más Débil”, ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 54: “Los derechos fundamentales se afirman siempre como leyes del más débil en alternativa a la ley del más fuerte que regia y regiría en sua ausencia”.
no clássico “Derecho y Razón”, p. 335, neste momento na vertente do direito penal que se analisará no capítulo seguinte.
Ressalto, ao final, que lei do mais débil, lei do mais fraco, pode ser sintetizada como lei do pobre porque “el pobre, como expresión de lo humano, por la violación sistemática de su esfera vital dará siempre la pauta de esta búsqueda histórica de la vigencia real de los derechos humanos, la justicia y el bien común” (David Sánchez Rubio, “Filosofia, Derecho y Liberación en América Latina, Desclér, Bilbao, 1999, p. 183).
Mas pobre enquanto categoria sociológica. É que “la categoria pobre es amplia y abarca todo tipo de pobreza, desde la miseria del hombre hasta la falta de justicia y derechos, la desigualdad, la opresión, la falta de libertad, el compromiso de la fe por la degradación del hombre” (José de Souza Martins, citado por Jesús Antonio de la Torre Rangel, “Sociologia Juridica y Uso Alternativo del Derecho”, ed. Inst. Cultural de Aguascalientes, 1997, México, p. 37).
E A LEI PENAL?
Se a lei é sempre a lei do mais fraco, o arsenal interpretativo do direito penal tem que resolver a primeira questão básica: quem é, aqui, o débil (a partir de cuja “totalidade” olhar-se-á o fenômeno penal, ou seja, desde onde serão apreciadas as normas)?
Salo de Carvalho (“Descodificação Penal e Reserva do Código, publicação ITEC) bem esclarece: “... o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”.
Ferrajoli, vez mais, ensina:
“Es más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en el delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios com el”
...
“Bajo ambos aspectos la ley penal se justifica en tanto que ley del más débil, orientada a la tutela de sus derechos contra la violencia arbitraria del más fuerte” (“Derecho y Razón”, p. 335).
Em outro local (“Justicia Penal y Democracia. El Contexto extraprocesal”) ele é mais incisivo:
“En la tradición liberal-democrática, el derecho y el proceso penal son instrumentos o condiciones de “democracia” sólo en la medida en que sirvam para minimizar la violencia punitiva del Estado, y constituyan por tanto – antes que un conjunto de preceptos destinados a los ciudadanos y de limitaciones impuestas a su libertas – un conjunto de preceptos destinados a los poderes públicos y de limitaciones impuestas a su potestad punitiva: en otras palabras, un conjunto de garantias fundamentales del ciudadano frente al arbítrio y el abuso de la fuerza por parte del Estado”.
Na mesma linha, ou seja, o penal enquanto garantia do cidadão-réu contra o perseguidor, veja-se o brilhante livro de Adauto Suannes, “Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Legal”, RT, 1999, p. 128/154.
Supera-se, assim, a questão básica: o débil (ou o pobre, enquanto categoria sociológica) no direito penal é o acusado – deve ser protegido, pois (exclui-se a ótica oriunda da “lei e da ordem” que o vê como instrumento da vítima, ou dos “homens bons”, na busca desesperada da punição).
Como, então, olhar a lei penal desde o ponto de vista do mais fraco?
Em dúplice diretiva:
na direção punitiva/perseguidora, a interpretação – aliás, já o disse em outro local (“Aplicação da Pena e Garantismo”, em parceria com Salo de Carvalho, ed. Lumen Juris, 2001, p. 124) – deve ter força centrípeta: a imantação é para o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível ao acusado, diria Ferrajoli).
Neste momento, a lei – garantia espetacular ao cidadão, tanto que o penal segue o princípio da legalidade – protege o cidadão-réu.
Assim, tudo vai em direção ao “núcleo duro” (diria Hart, “La Decisión Judicial”, p. 33) do tipo. É que as normas penais – agora diria Dworkin (“La Decisión Judicial”, p. 36) – “son reglas precisas”.
Eis o momento precioso da lei: em momento algum ela pode ser ultrapassada em prejuízo do débil. Aqui, aplicar a lei é como diria David Sánchez Rubio (loc. cit., p. 242) “una actuación revolucionária”.
Importante – desde meu ponto de vista – se tenha claro a força centrípeta quando se persegue o cidadão (o “príncipe” no penal) frente a constante violação da legalidade (repito: aqui protetiva, logo deve ser obedecida) quando se olha a lei como instrumento de dominação.
Um exemplo tenho como esclarecedor: o artigo 157, § 2º, I, do Código Penal Brasileiro, majora a pena de um terço até a metade quando o agente, à violência ou à ameaça, faz “emprego de arma” (art. 157: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa... § 2º. A pena aumenta-se de um terço até a metade: I. – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma).
A interpretação na direção ao “núcleo duro”, com vistas a “reglas precisas”, ou seja, na proteção do débil – a “centrípeta” porque persegue o cidadão –, arma só pode ser instrumento destinado ao ataque, a fazer mal, a causar dano físico.
No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nega vigência a lei ao “alargar” a interpretação, agredindo, assim, a proteção ao cidadão, ao sumular o entendimento que, para fins de majoração, entende-se que revólver de brinquedo é arma.
O Terceiro Grupo Criminal do Rio Grande do Sul (E. I. 70 00/653 666), através de voto do precioso Des. Aramis Nassif, com argúcia, ataca o entendimento sumulado. O voto de Aramis vai transcrito:
“A arma de brinquedo não pode ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo e. STJ. É que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal exasperante através de decisão judicial. Contrário sensu vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...). Mas, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Por maioria, acolheram os embargos.”
“... Sr. Presidente. 2. Acolho os embargos no sentido de reconhecer prevalecente o voto vencido. E a razão é a obviedade conceitual, material, visual, palpável de que revólver de brinquedo é brinquedo e arma é arma.
Ou não?
Se não, certamente que vou ter que repensar tudo que aprendi desde que ganhei meu primeiro ‘revólvinho’ de brinquedo (e lá se vão cinqüenta anos...)
Não existe mais brinquedo.
Mas eu tinha certeza que aquilo que eu tinha era um brinquedo (eu só tinha cinco anos de idade e sabia disto!)
Ou será que meus pais dar-me-iam uma arma?
Será que era uma arma e eu não percebo? Mas não seria uma brutal irresponsabilidade?
Mas eles eram tão cuidadosos e, por isto, não acredito que eles deixariam eu brincar com uma arma...
Bem, se estou certo, com apenas cinco anos de idade eu já sabia que brinquedo é brinquedo, e que arma é arma. Aliás, meu pai não deixava eu tocar no revólver verdadeiro que mantinha distante de meu alcance. Porque era uma arma, dizia ele. Será que ele estava me enganando e o que ele guardava com tanto cuidado era um brinquedo?
Não acredito, por isto, que a jurisprudência brasileira tenha o poder mágico de transformar um brinquedo em arma.
Afinal, a norma (art. 157, I, CP) não fala em emprego de arma? Não achei no meu Código expressão ou termo como emprego de brinquedo que autorizasse tornar a sanção mais severa. Não achei...
Como ampliar conceitos para prejudicar o réu?
A arma de brinquedo não pode, pois, ser capaz de caracterizar a majorante descrita no inciso I, § 2º, do art. 157, do Código Penal, ainda que, em sentido contrário, esteja sumulado pelo Eg. STJ. É, como disse acima, que não convence a possibilidade de um brinquedo ser transformado em ‘arma’ para satisfação do conceito legal.
Mas é eficaz para caracterizar o roubo. É que a capacidade intimidatória subjuga a vítima, impedindo que possa defender o bem jurídico atacado pela ação criminosa. Estou convencido que, pelo efeito intimidatório produzido na pessoa atacada, o emprego do simulacro pode caracterizar a grave ameaça, esgotada no plano psicológico e, assim, erige em roubo a atividade delinqüencial.
Todavia, vejo distância inalcançável entre este efeito e a majorante do artigo 157, § 2º, inciso I, do Código Penal, mesmo que, com tal convencimento, esteja contrariando a Súmula 174 do Eg. Superior Tribunal de Justiça. Acontece que, se é certo que arma de brinquedo desloca o modelo típico para o roubo, pelo arrasador efeito sobre a vítima, não pode ser conceituada, materialmente, como arma.
O espírito das majorantes é impor ao condenado um plus na sanção para o efeito de atender os princípios da necessidade e suficiência da pena. Assim, se o agente perpetra delito em circunstâncias que inflige à vítima especial sofrimento, físico ou mental, merece que sua pena seja exasperada.
Mas estou convencido de que, se presente a grave ameaça, jamais esteve presente a arma. Significa dizer que, de certo modo, o agente corre maiores riscos e a perspectiva de frustração do ato criminoso é muito maior se empregar um brinquedo como arma ante eventual reação da vítima ou de terceiros. Ele é, assim, pessoa menos perigosa do que aquele que, empregando arma verdadeira, gera, além da coação à vítima, sério risco à sua integridade física e, por tal, não pode sofrer as mesmas conseqüências penalizadoras.
Será que estive enganado por cinqüenta anos e o STJ, através de uma Súmula, veio revogar minha ignorância? Com a devida vênia, fico com a verdade de meus pais, pois eles eram responsáveis, sensíveis, humanos, enfim... Não estavam presos a delírios provocados pela fúria punitiva irracional que inspirou a sumulação. E para eles brinquedo era brinquedo, arma era arma...
O voto é no sentido de acolher os embargos e fazer prevalecer o voto vencido.
É o voto.”
Penso nada mais necessário dizer.
No entanto, quando para beneficiar o débil no direito penal entendo que a interpretação deve ter força centrífuga: dirigida para fora, na direção libertária.
Neste momento, ao contrário do que se fez o S.T.J. – arma de brinquedo como arma – o olhar interpretativo deve ser extensivo. Aqui os princípios gerais do direito são – como se viu no capítulo anterior – o instrumento hábil para combater injustiças, perseguições inócuas, excesso legislativo.
Salo escreve (local citado):
“Importante notar, contudo, que a exclusão das fontes materiais em matéria penal (v.g. analogia, costumes, jurisprudência, doutrina e direito penal comparado) diz tão-somente ao processo de interpretação criminalizadora e/ou penalizadora. Tal proposição não esgota toda esfera penal ao pressuposto da legalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo as fontes materiais das possibilidades judiciais. Sua negação é restrita aos processos de inclusão, não aos de exclusão da pena ou do delito (v.g., causas supra-legais de exclusão de tipicidade, ilicitude e culpabilidade).
Aliás, Alberto Silva Franco bem apanhou o papel do juiz neste espetáculo (“O Compromisso do Juiz Criminal no Estado Democrático”, Justiça e Democracia, nº 3, p. 270/271):
“Juiz penal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do estado leviatânico”
...
“é em resumo, ser o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo. E seria melhor que nem fosse juiz, se fosse para não perceber e não cumprir essa missão”.
Então, lei para que(m)? Para proteção do pobre (enquanto categoria sociológica) frente ao poder desmesurado.
Preciso acreditar nesta máxima..."
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quinta-feira, 23 de julho de 2009
Artista no direito
A obra de Luiz Vicunha
Este menino eu tive o privilégio de conhecer e ter como aluno este semestre que passou. Exemplo do que diz Warat, ele demonstra como a arte pode auxiliar na formação de um melhor ser humano. Através dele homenageio todos os alunos com que tive o privilégio de conviver e aprender e aqueles que ainda virão no futuro a abrilhantar minha caminhada.
Por que temos medo da felicidade?
Passamos a vida em busca de algo que já existe, está em nós, em tudo que nos cerca e mesmo assim, nos sentimos frustrados por nunca encontrarmos a plena felicidade. Basta observarmos o mundo e veremos que cada um a sua forma busca encontrar este tesouro perpétuo. Um cálice sagrado de onde só transbordará leite e mel, tesouros e alegrias. Certa vez, alguém no meu passado distante me alertou: não existe felicidade, existem momentos felizes... Quis crucificá-lo! Como ousara descrer do objeto de minha busca mais sagrada? Por que as pessoas têm medo da felicidade?
Hoje, trocamos de valores como trocamos de roupa, com a mesma facilidade com que mudamos o canal de TV. Felicidade pode ter inúmeros significados, é como uma camisa de Lycra que veste a todos, mas a cada um de uma forma especial. Para alguns ela é amor, para outros paixão, outros ainda, sexo sem compromisso (que eles denominam liberdade...), alguns a atribuem à família, ao êxito no trabalho, à saúde, à fartura... Os avarentos atribuem felicidade ao acúmulo material. Os carentes, a imensa lista de amigos no celular. E vamos cada um de nós buscando concretizar a dita cuja: Felicidade.
Porém, incontável é o número de pessoas infelizes, frustradas na busca incessante deste objetivo comum. Engraçado como um objetivo comum não consegue ser perseguido senão de forma individual. Queremos algo que deve ser compartilhado, mas de maneira diversa, voluntariosa, queremos a nós, unicamente, o gozo deste prazer. E se a felicidade é algo difícil se buscada de forma solitária, que dirá se a colocarmos nos ombros de outra pessoa, que voluntariosa como nós poderá partir a qualquer minuto levando consigo nossa felicidade. Será por isso que não nos entregamos ao outro nesta busca? Será por isso que resistimos ao amor, a paixão, ao carinho, à cumplicidade?
Quantos homens e mulheres encontramos (e encontraremos) na vida que se queixaram da solidão da procura, mas que, no primeiro contato com a possibilidade de momentos felizes, fogem do outro qual coelhos assustados. Quantos famintos pela vida, sem vida, jazem depressivos, sem notar que estão vivos?! Quantos românticos há que só sabem falar sobre a arte de amar, mas são incapazes de fundir-se ao outro, de entregar-se ao desvario de seus sonhos mais secretos. Pobres loucos que fogem assustados da felicidade com tanta violência quanto a buscam. Fogem do outro com tanta pressa quanto o encontram. É que para muitos, a felicidade não está em encontrar o sagrado Graal, em possuí-lo, detê-lo, mas sim na constante aventura de buscá-lo, na incessante procura que não lhes dá paz de espírito.
Desacostumado da paz, o homem busca a guerra. Sem coragem para o amor, busca o ressentimento. Desorientado na paixão, busca a frieza de relações tão passageiras quanto uma noite de verão. Infeliz em não saber o que busca, foge como criança assustada quando encontra. Para que serviria o gral quando o encontrássemos? Como nos sentiríamos frustrados em saber que a Felicidade era algo tão simples, que sempre esteve ali, do nosso lado, em nós e por nós?
Não, melhor que a conjugação eterna de momentos felizes é a frustrada busca da felicidade eterna. E seguimos nessa procura, qual cegos, desorientados por nossa bússola de medos num mar de sonhos, deixando para trás terras paradisíacas, ilhas mágicas, momentos eternos, pessoas inesquecíveis, um mar de gente que abandonamos e magoamos pelo caminho em nossa busca sagrada. Pessoas que ousaram tentar frear nossa busca e nos fazer feliz (a isso muitas vezes reagimos como se estas quisessem nos aprisionar). No dia que descortinarmos o desconhecido, descobriremos enfim, que a felicidade está em nós, está ao nosso alcance, ao nosso redor e no outro. Talvez ao final da busca, olhemos para nosso lado e encontremos o Graal, ai entenderemos que a felicidade deriva do verbo amar e que não se pode ser feliz sem amar a si e sem amar ao outro. Como no Pequeno Príncipe, aprenderemos com a raposa que "somente com o coração podemos ver com clareza... o essencial é invisível para os olhos".
(Andréa Wollmann)
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Segundo Ensaio
As possibilidades de resistência individual e coletiva durante a escravidão no Brasil.*
A análise da questão da escravidão no Brasil nos permite observar como em situações de extrema ausência de direitos os indivíduos e os grupos estabelecem formas de resistência e de construção identitária a partir de signos, códigos culturais, formas de ação e referencial religioso. Nesse sentido destacam-se as obras deautores como Mary Karash, Luiz Alberto Colceiro e Carlos de Araújo, bem como João José Reis, dentre outros.
Os autores demonstraram a situação de subumana a que foram submetidos os escravos na nossa história precedente, chegados de lugares os mais distintos, com matizes culturais diversas, expropriados por sua constituição mercadológica do reconhecimento enquanto ser humano. A forma como eram vendidos e mantidos na cidade, nos mercados ou levados ao interior do país acabava determinando seu futuro mais ou menos trágico. Os escravos da cidade acabavam tendo uma melhor condição de sobrevivência, embora distante daquilo que se poderia cogitar como algo bom.
Na sua obra Karasch discorda da posição de que os senhores eram bons com seus escravos como mencionava Gilberto Freire em sua obra Casa grande e Senzala. Ao contrário, Karash destaca com requintes descritivos a condição de subumanidade em que os escravos eram transportados, vendidos, mantidos, traficados, leiloados, mortos, sepultados, etc.
Segundo a autora, entre os escravos havia um reconhecimento e um estranhamento em razão da origem dos mesmos (crioulos, mestiços, ladinos, etc). Escravos e livres não se reconheciam, a ponto de negros livres adquirissem escravos para si. As identidades eram fragmentadas tanto quanto as origens dos negros que aqui se encontravam, em um primeiro momento, o que dificultava a resistência coletiva.
No que tange a resistência individual, os autores ressaltam desde os pactos de obediência entre escravo e senhor com esperança da troca de sua mansuetude pela possibilidade futura de compra de alforria, até as práticas violentas como o suicídio e o assassinato. Sendo o escravo uma mercadoria cara, era imperioso que este não estivesse deprimido ou doente para que fosse uma boa mercadoria de venda, por esta razão as ferramentas dos mercadores eram a dança, os ritos, o tabaco, etc.
A construção de uma resistência coletiva acabou possível através da construção de laços sociais de solidariedade entre os escravos que eram mantidos em cativeiro. Isso era possível de um lado, através do reconhecimento do sofrimento do outro e da condição comum que atravessavam, mas também pela dança e crenças que alcançavam uma forma de identificação sígnica, construída a partir de ritos e danças, jogos e linguagem própria de cada grupo.
A religião e a dança constituíram assim importantes fontes de resistência e de identidade, tanto individual quanto coletiva, eis que o preparo de poções e a possibilidade de feitiçarias capazes de matar (que nada mais eram que a manipulação de veneno para este fim) criavam uma mística ao redor do poder dos praticantes das religiões africanas. O candomblé e a umbanda como resultados desta forma identitária demonstram a tentativa de sobrevivência destes escravos de algo inerente a sua cultura, a um segredo e um saber seu, retido e repassado aos seus.
De outro lado, a assimilação da religião católica por certas práticas de cultura religiosa escrava, apropriando-se dos santos e a seu modo, redefinindo sua identidade associando-os a figuras da natureza ou que representavam ídolos de origem africana também demonstra esta capacidade de resistência coletiva e de uma formação de uma identidade cultural com signos próprios. A necessidade de pactos com pessoas brancas dotadas de algum poder para sua proteção era perfeitamente vislumbrada pelos negros, como ressalta Reis na descrição de sua obra. A lógica das negociações era uma lógica de preservação (muitas vezes individual).
Em razão dessa capacidade de resistência, quer coletiva, quer individual, os senhores acabavam formando alianças e pactos com seus escravos (como por exemplo, a expectativa de alforria por bons serviços, ou pela compra), as quais eram constantemente rompidas, criando contrariedade entre os escravos. Isso, aliado ao alto preço do escravo local com a proibição da entrada de novos escravos acabava tornando necessária aos senhores de escravos a adoção de políticas que quebrassem os elos sociais estabelecidos nas senzalas das Fazendas ou nas senzalas urbanas. Segundo Couceiro e Araujo, a transferência de escravos, a venda de alguns a troca pois outros possibilitava esta ruptura, pois que os recém chegados eram vistos como estranhos, desconheciam os signos daqueles que ali estavam e precisavam adaptar-se constantemente. Os laços familiares também eram rompidos desta forma, enfraquecendo a possibilidade de fortalecimento de laços de resistência coletiva mais violentos.
As lutas, as fugas, as rebeliões e os Quilombos, por sua vez, demonstram a tentativa de articulação de movimentos de resistência deste escravo oprimido em um momento histórico de total ausência de condições de liberdade e autonomia. A capoeira como dança e como arma de luta se destaca. A construção dos Quilombos como espaço de luta e resistência, bem como de asilo dos escravos fugitivos demonstra que nem todos os cativos consentiram livremente a condição a que foram submetidos pelos senhores de escravo, pelos mercadores e traficantes que os fizeram mercadoria valiosa após 1808.
Desta forma, a breve análise das discussões apontadas nos leva a refletir sobre os problemas relativos a construção da identidade e de organização de uma resistência contra a ausência de vínculos de proteção ou diante de uma realidade de aniquilamento. Conclui-se que em situações de extrema necessidade os indivíduos e os grupos acabam se reconhecendo e se organizando a partir de signos próprios e compartilhados, de códigos culturais, de formas de ação e referencial religioso ou místico, a fim de construir estratégias de resistência e de construção identitária.
* Wollmann. Andréa Madalena. Texto elaborado a partir das discussões e obras lidas durante a disciplina Sujeitos sociais e Proteção Social, sob orientação do professor João Bôsco Hora Góis, no Mestrado de Política Social da UFF.
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