terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Ser ou não ser esquerdeopata? Eis a questão!

Desde que entrei na escola aprendi mais sobre o mundo, as letras, as contas, a ciência, a geografia e a história. Como testemunha histórica posso dizer, contudo, que o ensino que recebíamos no colégio esteve sempre muito aquém do que seria necessário para formar uma consciência cidadã com um mínimo conhecimento geral. Sou to tempo da enciclopédia Barsa, de pesquisar na biblioteca municipal, dos trabalhos escritos a mão, do mimeógrafo. Filha de um casal pobre, cresci em bairros de periferia da cidade, estudei em escolas públicas mal faladas pela população pobre que eram sua clientela. Não é que nunca tive bons professores, mas sei que nem todos que me ensinaram tinham vocação para o que faziam, muitos deixavam transparecer seu descontentamento facilmente, outros, entretanto, eram vocacionados, mas impotentes diante da política de ensino vigente no país em plena ditadura militar. Mesmo assim, a vida reservou-me um caminho diferente e, enquanto meu mundo ia sendo moldado dentro dos preconceitos e avanços da década de 1980, bem como do pouco que aprendi na escola, minha curiosidade política foi se acirrando e encontrando outras fontes que vieram a mudar meu destino.
Lembro do dia que vi o comício pelas diretas na televisão; eu era nada mais que uma adolescente de 13 anos que sabia bem o que era viver em uma ditadura militar, naquele mundo onde meu futuro estava selado para ser igual ao de minha mãe e de outras mulheres que conheci. Eramos criadas para casar, ter filhos e, quando muito, um trabalho modesto para ajudar no sustento dos filhos o que, para conseguir, não nos exigia muito mais que o primeiro grau; ter segundo grau era um luxo.
Naquele tempo, no Rio Grande do Sul, havia um programa de televisão chamado TV Mulher, com um quadro em que um advogado falava de direitos, o que me encantava apesar da minha pouca idade. Seu nome era Bisol e eu aprendi algumas coisas sobre a lei com ele. Havia também uma série chamada Malu Mulher em que a Regina Duarte era protagonista, às vezes eu via escondido do quarto algumas das cenas e, através delas, comecei a entender que minha mãe era vítima de violência. Aliás, não só minha mãe, todos nós eramos vítima de violência. Sou uma mulher do século passado, mas muitas vezes, me sinto como se estivesse afrente das mulheres de hoje, isso é até engraçado.
Meu pai era como muitos homens daquela época: machista, agressivo, inseguro, tinha uma arma de fogo em casa e uma cinta de couro branca e larga com que costumava castigar minhas pernas e minha bunda quando eu dava motivos (pelo menos era isso que ele gritava, enquanto me batia para eu aprender, em seus ataques de cólera). Dentro de quatro paredes valia a lei do mais forte, a dele, essa foi uma das primeiras lições que eu tive da vida. Minha mãe, coitada, não tinha para onde fugir, não podia trabalhar, não lhe era permitido, não podia contestar, era uma refém de um casamento precoce por causa de uma gravidez. Eu tinha a obrigação de cuidar dos meus irmãos menores e apanhava também quando eles faziam alguma arte. Eu apanhava por qualquer coisa, apanhava e apanhava. Aprendi o lugar da mulher com aquele homem: quanto mais transparente e calada, melhor.
Mas fui crescendo, mesmo diante da violência à que era submetida entre quatro paredes (ninguém sabia dos maus tratos, ou fingiam não saber). Briga de marido e mulher ninguém mete a colher não é mesmo, educação de filho também! Essa a segunda e terceira lição de uma boa menina. Meu pai era uma figura interessante, verdadeiro lobo em pele de cordeiro. Era presidente de uma casa espírita onde palestrava falando sobre amor, perdão, reencarnação, etc, e nos forçava a estar presente todas as semanas nessas palestras. Ali, parecia um cidadão bondoso, pacato, calmo, mas bastava chegar em casa para ele mudar da água para o vinho. Ai de mim se não corresse com seus chinelos à porta quando ele chegasse do trabalho, ai de mim se não escutasse ele me chamar, ai de mim se respirasse perto dele em um dia em que estivesse tenso, ai de mim se derrubasse uma vassoura, ai de mim, ai de mim!
Eu era uma criança que não acreditava que tinha algum futuro, não ousava sonhar. Sem saber, repetia a sina da minha mãe, da minha avó, das mulheres que me cercavam. Ali, ninguém tinha universidade, ninguém tinha sonhos, poucos tinham carro, alguns eram donos das próprias casas humildes construídas provavelmente em terrenos originalmente de ocupação. As casas de madeira pequenas eram quando muito o sonho de não mais pagar aluguel e poder comer carne no final de semana.
Essa era a realidade da maioria dos pobres nos anos 1980 onde eu cresci, por sorte eu não era miserável, apenas vizinha deles, colega deles, amiga deles. No Rio Grande do Sul, a pobreza podia ser negra, alemã, polaca, italiana, etc., era a herança do processo de colonização de nossos ancestrais, mas também da morte dos negros no território (por isso eram poucos, pelo menos na cidade onde cresci) bem como dos índios.
Havia preconceito, sim, havia. Negros e Bugres, como chamavam os índios, nunca eram bem vistos, mas eu não percebia nada disso, afinal, criança que era, para mim eles eram meus coleguinhas, meus amigos de escola, de brincadeiras. Aliás, meu melhor amigo era negro e tinha o sorriso mais bonito que já vi, seu nome era Sérgio, ou Serginho, como eu o chamava. Estudávamos juntos e competíamos para saber quem tinha a melhor nota nas provas da escola, algumas vezes era eu e outras era ele, às vezes empatávamos. Também empatávamos na nossa perspectiva de vida: não sonhávamos com um futuro mas escutávamos muito o slogan de que eramos o futuro do Brasil, eramos apenas duas crianças (a loira e o neguinho, como diziam as más línguas).
O tempo foi mudando, as mulheres descobrindo seus direitos e um dia, depois de muita violência, minha mãe conseguiu se separar. Eu passei à outra fase da minha vida, cresci na marra, porque precisava ser agora o braço direito da minha mãe e ajudar a cuidar dos irmãos, fazer os serviço da casa, etc. Agora era a filha de uma mulher divorciada (como se isso fosse demérito de minha mãe). Com doze anos fui estudar a noite pois, graças a Deus, havia o estudo noturno, onde pude concluir o primeiro grau  (engraçado que é mais fácil agradecer a Deus, que às pessoas que defenderam a política que nos acolhe, que fez nascer o direito que usufruímos, que sofreu por não ter aquilo que conhecemos como natural e que nos vem de mãos beijadas, o que, aliás, não é). A escola foi o lugar onde despertei para a política, mas com muitos enganos, admito. Líder de grêmio estudantil, certa feita fiz uma caminhada contra a greve dos professores (se arrependimento matasse...), também já defendi a ditadura, já repeti as crenças dos meus pais irrefletidamente; como já disse, meu conhecimento histórico ensinado na escola nunca foi dos melhores. Felizmente, eu evolui dessa fase e aprendi os equívocos das ideias preconcebidas que repetia sem questionar.
Minha maturidade política feminista começou (sem que eu me desse conta) ao contestar a violência que meu pai cometia dentro de casa e apanhar muito por causa disso, fui criando coragem, me colocando entre ele e minha mãe e a faca da cozinha com que nos ameaçava, por exemplo. Fui eu que disse a minha mãe para ir embora e se separar, assim, para fugir da violência, em pequenos passos começava a construir-me feminista. Sim, eu não nasci feminista, mas fui tomando consciência de que ser respeitada em minha integridade física, ter acesso ao conhecimento, ao trabalho, ao convívio saudável com os outros também era um direito meu! Meu e de todas as outras mulheres como eu! Desde então minha desobediência se tornou insuportável para meu pai, afinal era desobedecia ao sistema e à sua autoridade, não mais me calava diante das agressões, defendia meus irmãos, defendia meus amigos, defendia aqueles que não podiam se defender. Mas não sabia exatamente como me defender. Eu apanhava, eu chorava, eu calava.
Os anos 80 foram o gérmen da minha consciência política que se desenvolvia ao lado das notícias dos telejornais que me permitiam saber de um processo constituinte, de uma nova Constituição, do direito a eleger meus representantes, do direito à igualdade, segurança, liberdade, educação, nenhum tipo de preconceito,, etc. Valores que eu não compreendia, mas aos quais me filiei, defendi, acreditei. Sem saber,  ia me tornando de esquerda, eu e boa parte das pessoas que acreditaram nessa nova realidade,  não porque se filiaram a algum partido, mas porque estes valores consagrados na lei nunca representaram os interesses das elites, ou dos militares, ou da monarquia ou oligarquias no Brasil. Em mundo binário como o nosso, se você não faz parte dos interesses de direita, se defende bandeiras humanitárias, se não fica em cima do muro, você é o que mesmo? Esquerda, claro!
Não, eu não sabia que era isso; assim como não sabia que era feminista, não sabia que era humanista, só sabia que os valores que eu defendia não tinham nada haver com o modelo de sociedade na qual eu crescia. Meus amigos eram negros, bugres, gays, mulheres separadas, pobres, "gentinha de bairro" como diziam os pobres brancos de direita que votavam no MDB (os quais eu conhecia bem) e que acreditavam ter alguma "origem" européia. Eu cresci vendo discursos preconceituosos e muitas vezes apanhando por ousar dizer algo diferente.
Eu sequer entendia nada de política quando Collor prometeu limpar o país dos corruptos e lutar pelos descamisados. Eu era apenas uma menina de quinze anos, recém casada, que tinha terminado a escola primária e parado de estudar porque estava grávida. Aliás, a primeira vez que o Estado disse algo sobre meus direitos depois da separação de minha mãe, foi quando um juiz da vara da infância determinou (sem me ouvir) que eu mal saída das fraldas poderia casar com meu noivo que era militar e tinha vinte um anos. Como moça de bem, solteira e de família, eu namorei, noivei e casei com o primeiro e único homem que se aproveitou da minha ingenuidade. O Estado, na defesa do meu interesse (pelo menos foi o que disseram meus pais) depois de grávida concederam um Alvará Judicial para legitimar o sexo com meu abusador desde meus treze anos, um Alvará para casar. Agora eu era mulher casada, uma pessoa de bem e o sexo era parte do contrato que assinei sem saber muito bem o que fazia no Cartório de Registro Civil com as bençãos do Estado e da sociedade.
Não, eu não sabia nada disso antes, levei anos para entender a relação de abuso à que fui condenada em nome da moral e dos bons costumes e com a conivência jurídica. Ainda hoje sei que essa história se repete, é a de muitas e muitas moças de bem que na verdade são apenas meninas que desconhecem seus direitos e que têm relevado e minimizados, por uma sociedade cúmplice, os abusos a que são submetidas.
Minha consciência política foi sendo forjada na dor e no sofrimento, meu feminismo foi emergindo como defesa diante de muitas situações de violência física e emocional. Tentar controlar meu pensamento à achar normal tudo isso me causou várias crises emocionais, mas tudo sempre foi chamado pelos demais de frescura, charminho, melodrama, tentativas de chamar atenção. Aprendi que as dores emocionais não tem qualquer importância para os demais. A sociedade sempre apoiou a violência com relação ao outro, desde que este outro fique calado, subserviente e, desde que essa postura omissa seja recompensada com pequenos favores, ou algumas benesses dos donos do poder. Enquanto cresci sempre ouvi que o bom cabrito não berra! E que eu por aprender a reclamar fazendo terapia, já era considerada a ovelha negra da família.
O tempo passou e por algum milagre e muita resiliência, eu cheguei a Universidade. Eu que fora ensinada a ser passiva, que acreditava não ser inteligente como me disseram por tanto tempo, um dia, cheguei aos bancos do curso de Direito. Eu acreditava no Direito, acreditava na mudança, acreditava na Constituição que na época tinha a mesma idade de meu filho mais velho, sete anos. Quando tive consciência de que sempre tive meus direitos violados eu pensei que saber o direito me ajudaria a me defender e aos outros que como eu sofriam, eu quis ser advogada.
Nada disso teria sido possível sem a luta da esquerda que me proporcionou a escola noturna, o Credito Educativo Federal, a bolsa de estudos, a possibilidade de sonhar com um mundo onde um trabalhador tivesse vez e voz nas políticas públicas. Sim, eu também tive meu momento paixonite pelo PT e pelo Lula. Ainda lembro de ouvir uma palestra dele em um evento em Natal quando a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência fez 50 anos de existência, Estava lá apresentando meu trabalho de pesquisa sobre omissão constitucional e mandado de injunção; eu acreditava na Magna Carta.
Aquele homem era impressionante, sua fala, apesar de vir de uma pessoa que não tinha muitos estudos, era lúcida e bem posta, ele sabia o que dizia e como falar com a multidão que ali reunida, junto com as cabeças mais inteligentes do país, buscavam alternativas e novos rumos para o futuro do Brasil e da ciência. Aquele homem simples chegou à presidência alguns anos depois com seu partido subindo ao poder prematuramente (como eu dizia na época) e os poderosos estavam preparados para isso. Desde então, confesso, nunca mais votei no PT, contudo, nunca votei nas oligarquias tão pouco. Me desiludi ao perceber que não seria possível mudar com um homem só.
Aquele homem humilde na Presidência nos deu orgulho, mas também foi o início da manobra de destruição do trabalhador que vemos agora. Aquele homem ganhava aplausos internacionais, falava aos ignorantes e aos líderes mundias com a mesma desenvoltura, por isso tinha que ser detido pelos poderosos, porque durante seus anos de governo, mulheres, negros, índios, pobres chegaram em massa aos bancos escolares e universitários e ganharam alguma voz, alguma vez no espaço público. Alguns, como eu, alçaram voos maiores e chegaram ao Doutorado no Exterior, que ousadia! Aquele homem precisava ser preso, não importa a que preço! E foi! A mulher do mesmo partido que o sucedeu precisava ser deposta, onde já se viu, tamanha ousadia numa mulher! E foi (golpe!). E depois de uma era Temer (temerária),  chegamos a autocracia Bolsomínia, entregamos o Estado para alguns militares, um juiz midiático e a uma família mafiosa que aprendeu a sobreviver nos bastidores do poder legislativo baseando sua existência e reeleições em discursos horrendos em defesa de desvalores do preconceito, da violência estilo olho por olho, do não direito, do pseudo moralismo, do medo dos gays, dos discursos da bala e da Bíblia de alguns em detrimento dos outros.
A aposta no retrocesso e na (Ustra)direita nos sairá caro, como foi caro o voto dos descamisados na era Collor. Hoje, em Davos, o atual presidente nos faz passar vergonha mundialmente, mas é exatamente o que querem os donos do poder, o homem ideal para concluir o projeto de destruição de qualquer direito social no país e para conduzir a massa de manobra que acha que sabe tudo porque leu uma fake news no whatsapp. Pelo menos tiraram o PT não é?
Sei que neste momento, os mais entendidos de história ou que sabem buscar no Google dirão que as políticas que citei (educação, crédito educativo, bolsas de estudo) não foram obra da esquerda, que estou sendo tendenciosa e defendendo bandido, que não se deve ter bandido de estimação e que #Lulalivre é defender ladrão!
E exatamente ai começa nosso problema de posicionamento político das massas de manobra no Brasil e seu pseudo saber. Elas não sabem (porque nunca tiveram acesso a um saber crítico) que as demandas dos menos favorecidos só foram escutados neste país e se transformaram em leis, porque vozes discordantes do status quo, ou melhor, da realidade que viviam se posicionaram em greves, em revoltas, em manifestações, em sindicatos, em partidos de esquerda e que muitos morreram, foram exilados e perseguidos na luta pelos benefícios que hoje temos. Os desavisados acreditam (graças a uma educação precária em história, em geopolítica, em filosofia, em sociologia, em economia, etc.) que os direitos caíram dos céus em leis feitas pelos políticos bonzinhos; acreditam em um Estado paternalista e em meritocracia em um país tão desigual e continental como o nosso. Acreditam ainda, que a corrupção é só dos outros e que qualquer um, que venha de uma classe que não seja a dos poderosos, que chegue ao poder vai roubar mais ainda que os que estão lá. Na verdade, a sociedade brasileira vê aquilo que nega ver sobre si mesmo, afinal, quem deles ousa mudar a realidade dentro de sua própria casa? Quem ali não justifica seu próprio jeitinho, a exploração da sua mãe, de sua esposa, de sua irmã ou da Dona Maria empregada que ajudou a criar os meninos para que os pais pudessem trabalhar e economizar para ter isso ou aquilo? De uma forma ou de outra, todos justificam sua parcela de culpa pela realidade que vivem, a palmada no filho, a exploração do menor, o salário injusto que ganham, o gato da luz ,água e TV a cabo, a sonegação do imposto, a nota que deixou de dar ou pedir, os juros que cobrou do dinheiro que emprestou para a mãe, o irmão, o cunhado, o cartão de crédito descoberto... Os valores tortos são dos outros, jamais nossos! Por isso, buscaram o Mito, mitaram e deu no que deu.
Assim como a maioria eu acreditava que um salvador da pátria poderia mudar os rumos do país enquanto crescia e segui acreditando até entender que não é assim que a política está desenhada constitucionalmente e só entendi isso depois de anos estudando, lendo e percebendo o mundo. Sempre estivemos em busca de um salvador, nunca da responsabilidade de nós mesmos. E, talvez porque sejamos impotentes em meio a essa Matrix, acreditar no milagre seja a unica esperança que nos mantém vivos, pois, do contrário, teríamos que como nossos avós, ir às ruas, fazer greve, participar dos sindicatos, dos partidos políticos, das associações de bairro, sair da sombra, apanhar da polícia em alguma manifestação, sermos perseguidos e ai, bom, seríamos criminosos que merecem apanhar não é mesmo? Por isso as massas defendem manifestações pacificas e fazem coro a favor dos abusos e da violência da polícia contra os que tem coragem de se expor, sem entender que não há mudança pacífica senão a de si mesmo e mesmo essa não acontece sem algum movimento doloroso.
Em pouco tempo (se pensar secularmente), meu conhecimento foi crescendo mas também a tristeza de perceber que a sociedade não acompanhou o meu movimento em busca de autonomia. Veio a minha separação judicial e essa foi a terceira vez que o Estado de Direito se manifestou na minha vida, agora, sancionando minha alforria, não sem antes perguntar em audiência se era isso mesmo que eu queria, afinal, o Estado defende os interesses da família (resta saber, da família de quem?).
Abri meu escritório de advocacia e me tornei professora de Direito em 2002 quando já era especialista. Sempre busquei aperfeiçoamento profissional e percebi que quanto mais eu sabia maior a minha responsabilidade social em debater, em difundir, em compartilhar esse conhecimento e mais, em relembrar aquilo que aconteceu, aquilo que esquecemos, aquilo que diz a lei, aquilo que acreditava outrora que já era algo (re)conhecido, algo posto, algo concreto. Passei a entender aquela frase de que "tudo que é sólido se desmancha no ar" com o passar do tempo e o ressurgimento de mentalidades mais conservadoras e violentas que as que criaram meu pai, eu vi o futuro repetir o passado como disse Cazuza.
O tempo andou e parece que retrocedeu. Eu que queria entender o Direito para me defender e defender os outros, agora encontro a tarefa que parece até contraditória, defender o próprio Direito do tsunami conservador que busca retroceder mais de meio século na história do Brasil dizendo (ou fazendo o povo crer falsamente) que estão a agir legitimamente dentro dos princípios democráticos de direito. Percebo hoje, ao arrepio da Constituição, a apropriação cada vez mais escancarada das Instituições do Estado por oligarquias comprometidas unicamente com o quanto poderão receber por vender a alma e a pátria mãe gentil aos grupos econômicos que buscam cada vez mais destruir os avanços de proteção social fruto do avanço jurídico construído dolorosamente no século passado. Vejo em pelo século XXI, jovens gritando contra os direitos humanos, mulheres gritando contra o feminismo, pessoas querendo a volta da ditadura e do autoritarismo numa espécie de alucinação coletiva orquestrada através dos meios de comunicação e da internet. Caminhamos à passos largos contra tudo que significa liberdade e igualdade, aliás, esse dois baluartes da Revolução Francesa liberal hoje são tidas como conquistas da esquerda e os direitos como se tivessem sido proclamados por comunistas! Os fake news conseguiram o que a história não conseguiu: um Brasil que já foi comunista e, como disse um rapaz da direita para mim outro dia; o direito penal não é rigoroso no país porque o CP foi feito pelos comunistas. A cegueira coletiva tem seus gurus, seus filósofos que nunca realmente se colocaram no processo de compreensão da realidade ou construção do conhecimento, que fizeram sucesso apenas veiculando seus achômetros, seu senso comum e encontraram coro na massiva ignorância à que fomos condenados nos últimos anos por políticas de desvalorização da educação e pessoas que fizeram faculdades relacionadas a ela sem a menor vocação porque acreditavam que entrar nesses cursos era mais fácil e que não teriam competência para fazer outra faculdade. E nisso, não podemos negar, existe também culpa na esquerda, o que, entretanto, não desqualifica por si só os movimentos de resistência (que acabam sim sendo de esquerda, já que a direita é ultra direita) que tentam, em vão, denunciar e conter esse desmonte do Estado e dos direitos constitucionais de proteção social e de humanidade no Brasil.
Infelizmente o pensamento do povo brasileiro é binário, como já referi, ou você é de esquerda ou de direita. A massa se nega a pensar, agindo como torcida organizada de um time de futebol ou uma escola de samba.  Como fomos governados pelo PT e este não foi capaz de modificar as coisas como sonhávamos, agora a moda é ser antiPT. Difícil é construir agora um conjunto de ações que miniminizem essa realidade e proporcionem diálogo, conscientização político histórica e crítica fundamentada a essa população. Por isso, qualquer pessoa que denuncie alguma coisa que seja ilegal, inconstitucional ou mesmo absruda nesse momento insano que vivemos é taxado de esquerdeopata, petista, comunista e outros "istas" que desmoralizem a fala e o conhecimento dessa pessoa, por mais especializado que seja. Diante da incapacidade de pensar da massa, melhor destruir o outro que tenta te tirar da caverna onde repousa sua consciência. Não se pode discutir política no Brasil de forma civilizada hoje, porque qualquer exposição contrária ao senso comum e ao Mito é desacreditada sob ofensas, de preferência pessoais, como esquerdeopatia, feminazis, ou eventos mesmo não provados envolvendo Lula, PT, corrupção, esquerda, e a ladroagem, que, ao que parece, só existiu e só é ruim porque veio da esquerda (e não quero dizer com isso que concordo com qualquer tipo de roubo da máquina pública seja por A ou B). Qualquer pessoa que neste momento histórico não tenha sido ofendida assim, ou chamada de anticristo, não tem posição política humanista crítica.
Eu, por exemplo, tenho sido acusada faz algum tempo de defender o PT, ser esquerdeopata, defender ladrão e até mesmo ser comunista ou feminazi. Mesmo antes do fervor das eleições do ano passado, falar sobre temas controversos de Direito já geravam motivo para ofensas por parte de alguns alunos, afinal, que essa professora fazendo doutorado tem de autoridade para questionar a política do CNJ ou a decisão dos tribunais a cerca dessa ou daquela situação pontual, ou ainda, a finalidade do sistema penal, das garantias legais desrespeitadas pelo Supremo?
Fora do Brasil ouvi de professor catedrático de uma universidade da Espanha, que fazíamos no Brasil qualquer coisa, menos direito! E tive,infelizmente, que lhe dar razão!! Na verdade tudo que tenho feito desde que voltei ao Brasil é defender o Direito, o processo penal, os fundamentos constitucionais, o devido processo legal, o direito de ampla defesa, os direitos das mulheres, etc. e percebi que basta isso para gerar revolta daqueles que não sabem o que estão fazendo nos cursos jurídicos, bem como a alguns colegas que se formaram em direito, mas não desenvolveram o pesamento crítico. Hoje no Brasil entrar em uma sala de aula e ministrar uma classe sobre o Direito é ser convidada a demissão sumária, afinal defender qualquer direito é coisa de esquerda e o lugar do saber deve ser sem partido (pelo menos, um partido que defenda o Direito que não seja aquele vindo do novo poder autocrático). Por infelicidade, tenho visto colegas compactuando com isso, outros absolutamente cegos diante do que está acontecendo e ainda, um outro tanto louco para estar nas vagas que hoje ocupamos na sala de aula, pelo status de ser professor de Direito, sem contudo, saber muito bem o que é o Direito ou terem lido Lira Filho.
Eu, no entanto, não quero nem vou me calar diante do que tenho visto e do que infelizmente tenho capacidade de entender e mesmo, documentar. Me pergunto constantemente que será o futuro dos professores das Faculdades de Direito no Brasil diante deste quadro de (des)direito? Não temos muito mais o que fazer neste momento senão assumir um papel político atuante que não é estar em cima do muro, o que, bem sabemos, seria compactuar por omissão com o que está acontecendo.
De fato, estamos diante de um impasse não somente teórico, mas ético e político jurídico: ou sobreviverão aqueles que compactuarem com a nova fase que é qualquer coisa menos Direito e ensinarão pela cartilha autocrática deixando aos seus descendentes o resultado social de sua omissão, ou serão combatidos e talvez extintos  e calados pelo poder econômico, perseguidos e demitidos por serem perigosos esquerdeopatas ou mal amadas feminazis que ficarão na história como últimos moicanos defensores dos direitos humanos e constitucionais no Brasil. O judiciário já sabemos de que lado está e, infelizmente, não nos garantirá presunção de inocência diante do assassinato do Estado de Direito para as gerações futuras. Dai a pergunta que não quer calar: Ser esquerdeopata ou não ser? Eis a questão! Me responda sem ideologia.

Andréa Madalena Wollmann
Advogada, Especialista em Direito Privado, Mestre em Política Social, Doutoranda em estudos filosófico jurídicos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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